Até os dias de hoje foram muitos os circos que se constituíram a partir dos artistas que, com a experiência adquirida em circos profissionais, decidiam montar o seu próprio “negócio”, seu meio de vida, seu sustento e de sua família. Pequenos núcleos familiares foram surgindo. Muitos já construíram uma história com a cidade. Conhecem a cidade mais que ninguém porque conhecem o povo, porque trabalham diretamente com a comunidade. E a comunidade é sua grande aliada no enfrentamento de violência, de desafios e das coisas do dia a dia.
Os circos urbanos abrangem todos os locais, permanecendo um elo entre pessoas e lugares. A maioria se encontra na periferia de Fortaleza, quase descambando para outro município vizinho, ou numa extrema e difusa, quase imperceptível, divisa entre uma periferia e outra, conhecida somente pelos moradores do lugar. Estão diariamente a oferecer o ofício da sua arte para a população. Lá estão: World Circo, Circo do Motoka, Circo Tropical, VIP Circo, Mirtes Circo, Circo Oriental, Educativo, Ringle, Meridiano, Pe. Cícero, Los Ribeiros (antigo, Tessalonicense Circo Rei, antes ainda era Circo N. Sra. de Lourdes), Circo Greyce, Capucho, Alegria, Marlin, Dakar, Circo Show.
Todos esses circos sobrevivem num misto de luta e heroísmo. Estão ali erguidos alguns imponentes, outros muito acanhados, porém com a sua dignidade à mostra, firmes, valentes.
No mundo do circo é assim: decidido o dia de mudar de lugar, logo ao final da sessão, a lona é arreada e toda a estrutura que estava há pouco em pleno funcionamento é colocada em um caminhão que segue rasgando a cidade até encontrar outro ponto para se instalar. Assim acontece também com a família circense. As crianças acordam em outro lugar, embora na mesma cidade, mas em outro bairro e começam a se apropriar daquele novo espaço. Ali, juntas, vão desbravando o espaço, conhecendo a vizinhança. É o enredo básico das histórias de vida das famílias de circo na cidade. Parece comum, mas não é. Pelo cotidiano dessas pessoas passa muitas idas e vindas. É um montar-desmontar de lonas, cercaduras, mastros e trailers (poucos são os que possuem trailers, para muitos deles ainda é objeto de luxo). E foi assim desde muito tempo.
Quando um circo se instala na periferia, traz para o imaginário infantil um mundo fantástico. No terreno ao qual se chega, muitas relações acontecem a partir dessa novidade que se incorpora ao local, geralmente em terrenos públicos desabitados, ou terrenos baldios de terceiros que cedem às vezes sem ônus para quem chega. Há proprietários de terrenos que alugam o espaço e ainda cobram privilégios ao dono do estabelecimento, como, por exemplo, a cessão de ingressos para a sua família nas sessões do circo durante todo o período em que estiver ocupando o espaço. Mas também situações de camaradagem, cordialidade, “coisas de vizinho” – como se diz na linguagem popular – acabam por acontecer: do pedido de água até o uso do banheiro do botequim mais próximo. Criam-se relações de afeto, de amizade, muitos laços afetivos que podem durar. Alguns circos que passam deixam saudade. O circo é, sem dúvida, o equipamento cultural que mais próximo chega às comunidades periféricas.
O circo permanece até hoje na sua mais completa e ingênua soltura. A ele nada pode se prender. Desloca-se espontaneamente de um lado para ou outro da cidade. É livre, obedece somente ao comando natural do seu dono que se dá muitas vezes pela intuição ao perceber quando uma praça é boa ou não. Também percebe quando a praça está “queimada”, denominação usada para o local cuja bilheteria não rende mais, quando há saturação. Isso se dá pela passagem recente de outro circo no mesmo local, a duração de sua estada, sua relação com o entorno, com a comunidade.
O povo do circo se conhece e forma uma grande família que, como tal, tem suas divergências, suas contradições, mas nunca deixa de saber uns dos outros, de manter uma proximidade, de se solidarizarem entre si. Como exemplo disso, verificamos que os artistas de circo tinham um encontro marcado às segundas-feiras, na Praça José de Alencar. Um acontecimento espontâneo, que está na história do circo do Ceará, no inconsciente coletivo da categoria. Hoje eles continuam se reunindo no mesmo dia, porém em torno de discussões acaloradas sobre o fazer circense na cidade, em assembléias marcadas pela sua Associação dos Proprietários, Artistas e Escolas de Circo do Estado do Ceará – Apaece. .
Todavia, a história do circo na cidade tem se modificado vertiginosamente desde 2006. Outra história está sendo escrita pelo povo circense. A categoria do circo se encontra noutra esfera de diálogo com a cidade e com o poder público. Importante mesmo é que os artistas, os técnicos e os proprietários de circo estão em pleno exercício, desta vez não somente em função do espetáculo, mas da causa circense.
É fato que o circo no Ceará tem ainda um longo caminho a percorrer. Novos desafios terão que ser enfrentados. A continuidade no trabalho de integração dos que fazem a categoria, as discussões coletivas em torno do fazer circense, o diálogo com o poder público, a relação com a cidade e o enfrentamento da pobreza e da falta de oportunidades para o seu desenvolvimento, são questões importantes que devem ainda fazer parte do seu cotidiano por mais algum tempo. Entretanto, apesar das adversidades do dia-a-dia, tudo parece simples, tudo parece normal na vida dos artistas e das crianças circenses. O que é realidade parece mesmo ser sonho.
É ainda nas tardes quentes abrandadas pela sombra das lonas, precárias ou recicladas, ou nas dolentes noites cearenses, entre as luzes por vezes incertas de uma tenda no meio do nada, que o centro do picadeiro convoca o encanto dos acrobatas, a pilhéria dos palhaços, o mistério dos mágicos, a graça dos contorcionistas para fazer sorrir o menino e a menina, para entreter o idoso, para instigar o jovem. É quando o circo urbano re-inaugura a magia diante do respeitável público, com esse que é e sempre será o maior espetáculo da terra: a Arte Ancestral renascendo diante dos nossos olhos, com o fôlego das coisas que são para sempre.