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Resenha: Noites Circenses. Espetáculos de Circo e Teatro em Minas Gerais no Século XIX

Silva, Erminia – Resenha do livro de Duarte, Regina Horta – Noites Circenses. Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. In: História Social – Revista da pós-graduação em História – IFCH – Unicamp. Campinas, número 3, 1996, pp. 205-210

A problemática que orienta a pesquisa de Regina Horta Duarte é o processo de “sedentarização, fixação e esquadriamento” das relações sociais, que foi crescentemente determinante ao longo do século XIX. Através do conceito de “governamentalização” do Estado Imperial (e não “estatização da sociedade”), entendido como um conjunto de “instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder”, a autora analisa o surgimento da população e do território, como problemas a serem resolvidos e enigmas a serem decifrados. Discute como a sociedade mineira do século XIX foi mapeada, pesou e mediu suas riquezas, alinhou suas ruas e estradas, buscou dominar os rios e águas, agiu para disciplinar homens e mulheres, conquistando-os para uma vida ordeira e laboriosa, fixou-se em atividades agrícolas e combateu populações incontroláveis, como bandidos, vagabundos e índios.

Apesar destas tentativas, a autora mostra-nos como vários grupos sociais eram dissonantes das intenções homogeneizadoras daqueles projetos, elementos “fragmentadores e desafiadores” da sedentarização e fixidez, entre eles as movimentações nômades de índios, ciganos, vagabundos, bandidos, e artistas ambulantes de teatro e circo. Grupos que dificultaram a eficácia pretendida pelos discursos governamentais de construção de uma província “ordenada” na implantação daquelas medidas. Em um período de movimentação intensa que busca o “esquadriamento da sociedade” do século XIX, a presença dos artistas nômades instaurava linhas de fuga, detonava desejos, fragmentava identidades e oferecia “(…) caminhos e possibilidades imprevisíveis e perigosas”.

Após uma análise, no primeiro capítulo, da sociedade mineira do século XIX, partindo da hipótese que havia um movimento de “sedentarização e fixação”, para o qual vários grupos nômades aparecem contraditoriamente; centraliza sua atenção na movimentação em torno dos espetáculos de teatro e, particularmente, dos circos. Observa um caráter marcante desses espetáculos no dia a dia da população mineira através de inúmeros relatos de memorialistas. Uma das fontes privilegiadas foram os jornais do período, que dedicaram várias páginas às apresentações dos espetáculos teatrais e circenses, e possibilitaram à autora avaliar a ressonância desses espetáculos na população. Além destas fontes, Regina H. Duarte também analisou: relatos de viajantes, leis regulamentadoras dos espetáculos, obras teatrais escritas no século XIX, relatórios dos presidentes da Província e a legislação mineira do período.

É na escolha destes elementos dissonantes, para analisar a sociedade mineira do século XIX, que este livro se apresenta inovador, tanto com relação ao tema, quanto ao tratamento metodológico adotado.

Neste ponto, normalmente a função do resenhador é a de inserir a obra lida em um conjunto de produções, de preferência no campo disciplinar da qual faz parte – neste caso a história – debatendo e comparando as várias questões teóricas e metodológicas. Isto será feito. Ao privilegiar os artistas ambulantes de teatro e circo, a autora tornou-se uma das primeiras, senão a primeira historiadora, a desenvolver uma análise da sociedade do século XIX, no caso a mineira, a partir do nomadismo e, o que nos interessa aqui em particular (assim como para a autora), tomando o circo como tema de análise. Assim, a obra será prioritariamente inserida no conjunto da produção acadêmica que tematiza o circo como objeto de estudo.

A maioria dos trabalhos acadêmicos brasileiros que utilizam o circo como objeto de estudo, foram escritos durante a década de 1970 e início de 1980, ligados à antropologia, sociologia e educação. Salvo alguns memorialistas, ou à pequena produção “não-acadêmica”, são raros os trabalhos anteriores ou posteriores a este período. A única produção “não-acadêmica” a destacar, antes de 1970, é a do jornalista Júlio Amaral de Oliveira, que dedicou a maior parte de seus escritos, em vários jornais e revistas, à pesquisa da história do circo no Brasil.

As perspectivas teóricas e metodológicas desta produção acadêmica acima mencionada, mesmo que alguns trabalhos tenham procurado trazer informações históricas sobre o circo no Brasil, analisam o circo na forma em que este se apresentava no momento da pesquisa. E um dos aspectos que chama a atenção é o fato de utilizar o circo como recurso para o estudo de outras temáticas. Assim, as análises são realizadas para se saber como se conformam e se veiculam, através do circo, as diversas ordens, já pré-definidas, de determinações – econômica, social, política e cultural – no lazer da periferia, ou então como o circo representa a migração da zona rural para a urbana; ou ainda como se pode, tendo o circo como objeto de estudo, estudar a cultura popular versus cultura dominante, ou o circo versus meios de comunicação de massa. Os processos culturais são analisados a partir de uma visão centrada nestas determinações, caracterizando pólos antagônicos tais como elite e popular, centro e periferia, rural e urbano, cultura popular e cultura de massa. Estas divisões conceituais refletem um período em que os intelectuais procuravam distinguir o que é ou não “popular” na sociedade.

O livro de Regina, apesar de ter um recorte temporal e uma abordagem teórica e metodológica diversos destes trabalhos, também considera os espetáculos circenses como manifestações importantes da vida cultural mineira do século passado. Porém, a autora não analisa estes espetáculos como manifestações populares ou eruditas, fugindo dos pressupostos clássicos dominantes nas ciências sociais, negando-se a discutir com conceitos pré-fixados relativos à cultura e à vida cultural; assim como foge de modelos explicativos de contextualização, de modo a não perder a riqueza e a “criatividade” dessas manifestações. Sua vantagem, como afirma Alcir Lenharo, no prefácio do livro, “(…) é a de evitar esquematismos, justaposições simplificadas de forma de poder que acabam por levar o poder maior (do Estado) a pressionar as forças sociais e culturais, a responderem (‘resistirem’) a ele. Regina confia as situações tensas e híbridas nas quais os esquadrinhamentos convivem apertadamente com linhas de fuga e desvios.”, ajudando-nos a perspectivar diferentemente,”(…) mais que a morosidade, o próprio impasse do alcance civilizador das iniciativas disciplinares.”.

Devido a seu caráter inovador, quanto ao tratamento da pesquisa relativa às manifestações culturais, este livro faz surgir novas questões polêmicas para o campo disciplinar da história. É exatamente por esta riqueza com que tematiza um debate instigante e novo no terreno da história que faz desta produção uma leitura obrigatória para os historiadores em geral. E, considerando o modo cativante de escrever e a amplitude com que toca um conjunto de outros temas igualmente fascinantes, como por exemplo o teatro, este livro atravessa o seu “território” disciplinar.

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