Fernandes, Millôr – “O Circo e o Congresso”. In: Jornal Opinião, 1º Caderno, p. 11, 11 de setembro de 1985.
A nota que o Jornal de Brasília publicou, comparando o Circo com o Congresso, ninguém negue, é altamente ofensiva aos profissionais do Circo – e não tenho a mais remota intenção de ironizar.
Pois bem; quando pensei que os humildes trabalhadores circenses viriam protestar contra a comparação desmerecedora, quem revelou uma indignação descabida e vitoriana foram os congressistas. Pior, porém; toda a imprensa, ao condenar o excesso de reação do Congresso, reconheceu, implicitamente, o direito dos congressistas se sentirem ofendidos. Quer dizer, a imprensa, como o Congresso, acha os trabalhadores de Circo indignos por definição.
Que fique claro: entre o palhaço e o senador – e, repito não tenho a mais remota intenção de ironizar – eu fico com o palhaço, e seus irmãos, o trapezista, o mágico, o domador. Não conheço nenhuma profissão mais séria do que a do profissional de Circo. Boa parcela desses profissionais já nasce naquilo, o malabarista é colocado no arame assim que anda, um domador não se improvisa, pois o leão não entra em cambalachos, o mágico leva anos aprendendo seus truques e o palhaço a vida inteira aperfeiçoando seus números.
Além disso, os trabalhadores circenses são naturalmente obrigados a uma disciplina férrea – um domador não entra bêbado com excesso de peso – e o trabalho de Circo é obrigatoriamente solidário, não só nos números perigosos mas também no conjunto dos trabalhos. A grande estrela, logo depois de seu número glorioso, já está nos bastidores ajudando humildemente a rolar um tapete e carregar um tamborete. Além disso, o profissional circense faz, tradicionalmente, três sessões aos sábados e domingos, corre riscos permanentes e só ganha seu pão se corresponder ao interesse do público.
E, final: eu nunca vi, em nenhum Circo, o netinho do Presidente domando um tigre por recomendação, a sobrinha do banqueiro engolindo fogo com pistolão, nem a priama da dona Carmem rebolando pra ser nomeada trapezista. E, claro, só por extrema gozação, algum Circo, algum dia, anunciará, como número extraordinário, um palhaço biônico.
Se o Congresso (e outras organizações do Estado) imitasse a probidade, a dignidade, e a estrutura do Circo, o país estaria salvo.