in Jornal Arte e Diversões. São Paulo, jan/fev de 1999, número 14 e
in Silveira, Cleia (org.) – Rede Circo do Mundo Brasil uma proposta metodológica em rede. Rio de Janeiro, Fase, 2003, pp. 34-38.
Para que uma arte sobreviva ela necessita fazer escola
(Annie Fratellini)
Este texto é resultado de trabalho de pesquisa que fiz sobre a história do circo no Brasil, como historiadora e faz parte de minha Dissertação de Mestrado, sob o título O circo: sua arte e seus saberes. O interesse em pelo tema tem a ver com a minha origem, pois nasci em circo e sou filha de Barry Charles Silva. Por tudo isso, sempre tive a curiosidade de conhecer a história que as pessoas que viviam debaixo da lona tinham para contar. Desde pequena, fui de “causo em causo” me acostumando a ouvir relatos de fatos e situações que iam me mostrando o quanto o circo era um lugar muito particular, no qual se produzia toda uma sabedoria própria, muitas vezes desconhecida pelos próprios circenses.
Partindo dos seus relatos e de pesquisas em jornais e livros, procurei estudar a maneira como os vários grupos circenses foram chegando no Brasil e por aqui foram ficando. Nesta pesquisa percebi a riqueza de temas que o mundo circense permite para ser estudado, desde os “causos” que nós circenses escutamos e vivenciamos o tempo todo, até os temas: criança, educação circense e seus métodos, família, mulher, arquitetura, teatro, música, entre outros.
Uma das coisas mais interessantes que fui percebendo, neste estudo, era como os circenses relatavam as suas aprendizagens para se tornarem artistas, transformando-se em profissionais muito capazes e dominando todo conhecimento necessário para isso. O que era mais interessante de tudo, é que esta aprendizagem era adquirida no interior do mundo da lona, principalmente pela tradição oral. O circo, no final do século passado até mais ou menos 1950, era uma importante escola, que formava seus próprios componentes.
A arte circense é, muitas vezes, considerada como o espetáculo mais antigo do mundo: “(…) o circo é o último vestígio de um saber antigo, existencial e iniciático. Esse saber, essa arte ancestral e única que é o circo, só se perpetua graças a dois mecanismos: a transmissão do saber de pai para filho, e o ensino proporcionado por uma escola.” (Ziegler, J.)
O circo herdou dos artistas ambulantes e saltimbancos, uma característica importante: a transmissão do saber de geração a geração. Desde 1770, formaram-se “dinastias circenses” que saíram da Europa Ocidental. A arte circense era transmitida de pai para filho. No Brasil, a partir de 1830, registra-se a presença de várias famílias circenses européias. Muitas chegaram como saltimbancos, trazendo a “tradição” da transmissão oral dos seus saberes.
Quando os circos foram montados, por aqui, eram formados por grupos familiares, são os que os circenses chamam de “circo dos tradicionais”. Esta organização familiar era a base de sustentação do circo. A transmissão do saber circense fazia deste mundo particular uma escola única e permanente. O que se aprendia era suficiente para ensinar a armar e desarmar o circo, a preparar os números ou peças de teatro, além de treinar as crianças e adultos para executá-los. Este conteúdo tratava também de ensinar sobre a vida nas cidades, as primeiras letras, as técnicas de locomoção do circo. Através deste saber transmitido coletivamente às gerações seguintes, garantiu-se a continuidade de um modo particular de trabalhar e de montar o espetáculo.
Do final do século XIX à metade do seguinte, é possível observar um circo que desenvolveu relações sociais e de trabalho específicas, como resultado das várias formas de adaptação entre o artista imigrante e a consolidação do circo como uma escola, além das ligações entre as várias famílias circenses – proprietárias ou não. A este conjunto chamei de circo-família.
Ser circense naquela época significava ter recebido e transmitido, através das gerações, os valores, conhecimentos e práticas, resgatando o saber circense de seus antepassados. Não apenas lembranças, mas uma memória das relações com a sociedade e com o trabalho, sendo a família o mastro central que sustentava toda esta estrutura. A criança deveria ser a herdeira e a continuadora do saber circense. O circo-família não transferia às escolas a obrigação de qualificar seus componentes.
O circense, na primeira metade do século XX, na sua maioria, já nasceu no circo. O processo de formação e aprendizagem tinha início desde o seu nascimento. A criança representava aquele que portaria o saber. No ensinar e no aprender estava a chave que garantia a continuidade do circo, estruturado em torno da família. “Antigamente toda criança do circo aprendia, o pai tinha aquela obrigação, e fazia questão do filho trabalhar. (…) Aprendia tudo sobre o circo, que o pai fazia questão de ensinar. (…) Era transmissão do pai para o filho, porque ele não queria que o circo parasse, não morresse. Então tinha esse dom. O pai se sentia obrigado a pegar o filho: ‘Filho você vai aprender…’, e o que ele sabia ele transmitia para o filho, e quando via um número, ensinava o filho, então houve amor pela criança para fazer artista dele.” (Armando Pepino).
Aparentemente não havia mesmo como fugir do “destino”. Os filhos representavam o futuro daquele tipo de circo. Os pais, e na falta destes, algum parente próximo, eram os que ensinavam às crianças – meninas ou meninos – os primeiros passos para se tornarem artistas. Ensinava-se a todas as crianças do circo, com idade suficiente no entender dos circenses, a execução dos primeiros movimentos do corpo.
Nem todas as crianças se sentiam aptas ou queriam aprender números que implicassem risco; havia no circo as que não podiam executá-los, por problemas físicos, ou simplesmente por não quererem aprender. Não era a maioria, até porque a chance de escolha era muito reduzida. Mas nem mesmo nestes casos deixavam de trabalhar em outras coisas, que não exigissem a destreza corporal.
Entravam em sketchs, atuavam nas peças teatrais, participavam da organização do circo, trabalhavam na armação e desarmação, na bilheteria. Era muito comum para estas crianças e jovens, aprenderem a tocar instrumentos, cantar e dançar. Enfim, os números de risco não eram os únicos apresentados durante o espetáculo, sempre havia o que aprender. “Tentaram, tinha meu avô, pai da mamãe, que era um velhão sueco, forte, ele era mesmo um atleta…tocava violino dando salto mortal…Então ele tentou me ensinar, como ensinou meus irmãos. Mas não deu, eu era muito medrosa, para isso eu não dei mesmo. Aí quando meu pai faleceu {1940}, um dia minha mãe me levou no médico e ele disse que eu tinha dilatação da veia horta. Então eles, ‘ah, não pode, ela tem coração dilatado’, eu achei bom demais, porque eu não gostava porque eles insistiam. …aí eu fui cantar, inventaram que eu tinha que fazer uma cançoneta, e me vestiram de baiana (…) aí fui lá, cantava, muito mal, mas o povo batia palma. Eu parei de fazer a baianinha e passei a ser bailarina. Ele contratou um professor de sapateado, era um artista mesmo do circo, ele nos ensinava (…) trabalhei muito nas peças de teatro, aí desde menininha.” (Yvone Silva)
A criança circense, no circo-família, era de responsabilidade de todos. Nas companhias, as crianças eram irmãos, primos, sobrinhos. Já era costume, na época, chamar “tia” ou “tio” os companheiros de trabalho que tivessem idade de pai ou mãe, sendo “sobrinhos” todas as crianças que pertenciam ao circo. As crianças mesmo que perdessem seus pais nunca eram abandonadas, sempre seriam absorvidas pela “família circense”, e com certeza virariam artistas.
Isto também ocorria com aqueles que não nasceram no circo, “gente da praça” que fugiam com o circo, ou que simplesmente a ele se incorporavam. Este “estranho” poderia até se tornar um tradicional, um formador da tradicional família circense ou um formador de uma dinastia circense, desde que passasse pelo ritual de aprendizagem dado por uma das famílias tradicionais. Qualquer pessoa poderia ser aceita pelos circenses, mas para isso tinham que aprender a sua arte, não bastava apenas se agregarem para serem figurantes ou participarem de uma grande aventura.
Somente os circenses eram conhecedores da arte de armar e desarmar um circo, ou um ‘aparelho’. Eles mesmos garantiam a sua segurança e a do público que assistia ao espetáculo. Era “natural” que tanto proprietários quanto contratados fizessem parte da montagem de cada detalhe. Como se diz na linguagem circense “todos tinham que ser bons de picadeiro e bons de fundo de circo”, não bastava só saber executar um número no picadeiro.
Aprender a dar um salto mortal, por exemplo, muitas pessoas aprendiam, não precisavam de circo para isto. Mas, saber ‘empatar uma corda ou um cabo de aço’, confeccionar um ‘pano’, ‘preparar uma praça’, ser mecânico, eletricista, pintor, construir seu próprio aparelho, armar, desarmar, é que diferenciava um artista circense de outros artistas.
A técnica aprendida por meio dos ensinamentos de um mestre circense era a preparação para o número, mas continha, também, os saberes herdados dos antepassados sobre o corpo. A transmissão oral da técnica pressupunha um método, ela não acontecia por acaso, mesmo que não seguisse nenhum tipo de cartilha.
No circo-família todos, independentemente de terem ou não nascido nele, passavam por um “ritual de iniciação”, cujos vários objetivos incluíam dar acesso ao conhecimento das técnicas circenses. Isto ocorria independentemente do local onde o circo estivesse ou a que família pertencesse.
A integração como membro do circo-família tinha o aprendizado como condição de permanência. Naquela época, ainda não havia profissionais outros que não fossem “artistas completos”, ou seja, não havia “especialistas” que só realizavam uma função; menos possível ainda era alguém viver no circo como um simples “apêndice” ou “agregado”.
A criança seria não só a continuadora da tradição, mas também um futuro mestre. Para ser um circense tinha que se assumir a responsabilidade de ensinar à geração seguinte. “Muita criança eu ensinei no circo (…) muita mesmo. Eu aprendi muito bem, com esse meu tio, tive um bom primeiro que foi o Hipólito, o Abelardo e o Rogê, meu tio. Então eu tive bons mestres e quem tem bons mestres, sabe ensinar muito bem, porque aprende tudo limpinho, tudo claro (…) Eu ensinava tudo o que eu sabia (…)” (Alice Donata Silva Medeiros).
Ao longo de sua aprendizagem, a criança “aprendia a aprender” para ensinar quando fosse mais velha. O “ritual de iniciação” – aprendizado e estréia – era um rito de passagem, a possibilidade de tornar-se um profissional circense. O contato com a geração seguinte era permanente, havendo um envolvimento direto na aprendizagem. A partir da adolescência, muitas crianças começavam a ensinar aos mais novos – irmãos, primos, e outros.
O ensino e a aprendizagem, semelhantes a qualquer outra relação de professor/aluno, continha mais do que ensinar a deslocar corpo, mais do que comparecer em horários marcados diariamente. O fim da “aula” não acontecia ao toque do “sinal”. Os mestres estavam presentes para explicar cada momento da elaboração, construção e manutenção dos ’aparelhos’, do material do circo em geral; mostrando a relação de confiança e segurança que o trabalho representava para cada um e para todos.
Os circenses sempre indicavam uma figura que se responsabilizava e possibilitava que se tornassem profissionais do picadeiro. O condutor do processo de aprendizagem que formava um artista era considerado um mestre. Mestre da arte circense, mestre de um modo de vida, mestre em saberes – ou seja, um mestre “pertencente à tradição”, pois durante toda a sua vida participou das experiências de socialização, formação e aprendizagem, que caracterizavam o circo-família. O mestre representava aquele que os introduzia “na escola para entrar no picadeiro”. Não cabia a ele apenas o treinamento do corpo e a preparação para um número específico, tinha que ensinar o artista para futuramente executar os mais diversos números.
Nos circos em que apenas a família proprietária estava presente, algum parente assumia o papel de mestre. Quando eram compostos por várias famílias, um artista, com um pouco mais de idade, era o mestre das crianças. Os pais as deixavam sob sua responsabilidade, não interferindo nem mesmo nos castigos. Este artista não recebia nada a mais para cumprir este papel. Para o circense era natural e obrigatório que alguém se responsabilizasse por ensinar: a tarefa de ensinar não fazia parte das condições para contratar o artista.
Ser “iniciado” na arte e ser alfabetizado fazia parte do processo de socialização, formação e aprendizagem. Saber ler e escrever era necessário para lidar com a parte financeira, para escrever os programas dos espetáculos, confeccionar cartazes, “fazer a praça”. Requerer junto às prefeituras a autorização para a entrada do circo na cidade; determinar o preço dos ingressos, dependente de uma verdadeira “pesquisa de mercado”, aonde o circo pretendia se instalar; fazer anúncios e propaganda para publicar nos jornais.
No circo-família, ninguém podia ser analfabeto. Além das razões mencionadas acima, a partir da década de 1910 o circense instala, junto com o picadeiro, um palco para encenar dramas: é o teatro no circo. Até então, os circenses encenavam sketchs e comédias. A aprendizagem dos textos destas encenações seguia a regra, era feita por meio da transmissão oral: de seus próprios familiares ou através de imitação do teatro e do cinema ou mesmo por meio de trocas dentro do próprio “mundo circense”. Eram raros os textos escritos para estas comédias e sketchs neste período. Mas o teatro no circo introduz definitivamente a linguagem escrita no circo-família.
Todo este processo de trabalho – manuscritos anônimos ou copiados dos folhetos, adaptações dos textos do teatro para o circo, produções de textos pelos próprios circenses – pressupunha conhecimento da leitura e da escrita, além da criatividade gerada por um conjunto de saberes e práticas presente no circo-família, garantia ao circense a capacidade de encenar peças mesmo antes da entrada do palco de teatro no circo. Embora a transmissão dos saberes continuasse a ser oral, a escrita e a leitura foram definitivamente incorporadas à qualificação “verdadeira”.
O teatro significou um aperfeiçoamento da linguagem escrita e falada, bem como reforçou a idéia de que a aprendizagem, qualquer que fosse, era incorporada para produzir e reproduzir o circo-família.
Apesar das dificuldades enfrentadas para inserir-se na sociedade sedentária, como no caso das escolas, o circo-família não deixa de alfabetizar seus componentes, contratando pessoas (professores ou não) para ir até o circo, levando suas crianças a espaços informais para aulas particulares, ou mesmo fazendo com que os secretários ou os mais velhos, que já sabiam ler e escrever instruíssem as crianças.
Estas estratégias adotadas para superar problemas vividos com o ensino da leitura e da escrita, junto ao ensino formal, mostravam que a “tradição” operava de uma maneira positiva, sempre sob tensão, possibilitando que os circenses fossem alfabetizados como uma tarefa de qualificação para dentro do seu “território”. Estas estratégias eram tão usadas, que pode-se até afirmar que o índice de analfabetismo no circo-família era quase nulo, muito diferente do índice da população brasileira naquela época.
Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado da autora, sob o título: O circo – sua arte e seus saberes – O circo no Brasil do final do século XIX a meados do XX. Campinas: Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, março de 1996.