Das minhas pesquisas sobre o processo de desenvolvimento histórico dos circenses, resultou, como primeiro produto, uma dissertação de mestrado, defendida em 1976, que tratava da formação e constituição de um determinado modo de organização do circo no Brasil, do final do século XIX a meados do XX, ao qual denominei de circo-família. Entre os temas analisados, abordei as relações entre circo e público, ou então entre circo e cidade, a partir do enfoque do modo como elaboravam significados próprios e buscavam estratégias de enfrentamento para determinados problemas, como exploravam a tradição em sua capacidade de operar sobre o mundo à sua volta e como buscavam soluções dentro do universo territorial do circo-família. Tais assuntos são recorrentes nos relatos dos circenses, quando falam do contato com o público e com os moradores da cidade, quando mostram o modo de enfrentar a incorporação do teatro, a maneira de tratar a alfabetização, as relações que constroem com determinadas instituições específicas, como a Igreja, entre outras.
Para algumas análises que tratam destes temas, o circo é visto sob a ótica dos elementos constituintes da sua organização do trabalho, das suas relações familiares, de sua memória, de seu processo educacional, entre outros, de acordo com o conjunto de valores dominantes de um lugar da sociedade, não nômade, o que o coloca na categoria de um “outro” ou “diferente”. As representações, então, do que seria o “normal”, configuram o que devia ser esperado de qualquer grupo social. A partir destas observações, procurei analisar uma outra parte daquelas relações, ou seja, o modo pelo qual o circo-família elaborou para si os olhares e significados daquele “outro”. Este pode ser entendido como o que lhe é externo, como “sociedade sedentária”, mas fica melhor caracterizado como aquele que faz parte do grupo que está fora da cerca: “os de fora”.
A apreensão deste “outro” é realizada como um movimento de identidade e diferença. É relevante saber como os homens e mulheres que constituíam o circo-família viam o público, como delimitavam a interface do circo com o “outro”, ou ainda como assimilavam e interpretavam a recepção da cidade e de seus habitantes, assim como de que modo produziam estratégias e soluções dos problemas originados nesta interface.
Não sendo possível abarcar todas as questões que poderiam ser estudadas a partir deste “olhar para fora”, procurar-se-á analisar principalmente os temas referentes à inserção do circense na “sociedade sedentária”, destacados nos próprios relatos dos circenses.
No final do século XIX e primeira metade do XX, os espetáculos circenses certamente eram a única diversão que chegava até muitas regiões do Brasil. Levava o exótico, como os animais, ou as fantásticas proezas realizadas com os corpos; encenavam sketchs, pequenas comédias e peças teatrais, dramas, nunca antes vistos pela maior parte da população do país. O circo, neste período, qualquer que fosse o espetáculo apresentado (somente números, números e teatro, números e atuação de outros profissionais, como os cantores) marcou fortemente o imaginário da população no interior do Brasil.
Por outro lado, mesmo considerando a existência deste quadro otimista, os circenses viam-se às voltas com estratégias políticas implantadas pelos governantes, pautadas pela lógica do sedentarismo, o que possibilitou verificar a predominância de uma visão preconceituosa dos nômades. Para Regina H. Duarte esta visão não decorria do acaso, mas “(…) de um processo, crescentemente determinante, ao longo do século, da sedentarização e esquadrinhamento das relações sociais. Os artistas, vistos como grupos nômades presentes nesta sociedade, situam-se numa espécie de contramão em relação à tendência de fixação predominante na época.”(2)
Em uma sociedade que se pretendia “fixadora” e com um conjunto de conceitos normatizadores aplicáveis às atividades das pessoas, esses grupos seriam considerados dissonantes frente aos projetos homogeneizadores. Os circenses eram vistos como emissários de forças desconhecidas e hostis, convivendo de modo tenso: o medo e o fascínio; o “temor e o maravilhamento” se enredavam nesta trama. O que se temia, segundo a autora, era justamente a sensação explosiva e alegre, difícil de ser contida, além da incontrolável e prazerosa transformação da cidade. Os artistas detonavam, no imaginário construído pelos habitantes das cidades, várias linhas dicotômicas, acenando com a possibilidade de uma vida de trajetos, de constante alargamento de contornos e fronteiras, em oposição à família, ao trabalho fixador, à vida estabelecida em um lar imóvel e “estável” numa só cidade. Isto justificaria os temores e desejos.(3)
Os estigmas daí decorrentes, como o de não possuírem família, um trabalho fixo e um lar são também temas constitutivos dos relatos dos circenses entrevistados. Mesmo reconhecendo que seu modo de vida era diferente dos sedentários, demonstram estranheza frente às características que lhes eram atribuídas. Os circenses transmitem a ideia de que havia uma constante vigilância sobre como viviam, trabalhavam, dormiam, comiam, moravam, e sobre o comportamento de seus homens, mulheres e crianças, por parte da “sociedade sedentária”.
Se um de nossos rapazes resolve passar umas horas sentado discretamente à volta duma mesa de um night club, é logo taxado de beberrão, libertino e outros adjetivos. Mas se um desses rapazes ´sociais´ que melhor estariam atrelados a uma charrua, for encontrado caído, vencido pelo álcool, justificam-no dizendo, ´o rapaz está se divertindo´.(4)
Eu só conto o que eu tenho conhecimento, das desavenças na cidade, dos transtornos na época de frio, quando eles diziam que atacava doença nas crianças da cidade e faziam o circo ir embora. Até a cor do circo que papai adorava, o vermelho e branco implicavam. Chegava à cidade e falava: ´Ué, este circo deste velho… ´ como é que falava este partido antigamente…tinha um partido que usava estas cores branco e vermelho, aí falavam que papai era político…e achavam que papai era daquele partido e chegavam até querer expulsar da cidade por causa da cor.
Então, doença das crianças… às vezes as crianças do circo pegavam sarampo, então as famílias comentavam: ´as criançadas do circo tá tudo com sarampo, tá tudo doente, família do circo ´sarampento´. Então papai lutava muito, muito trabalhador honesto, correto, para poder manter o circo e as famílias que com ele trabalhavam (Alzira).(5)
Para a sociedade? Para a sociedade minha filha, o artista de circo não era nada, na época… eu de criança, o artista era um renegado. Nós não tínhamos aquela vantagem que hoje tem, porque hoje já melhorou um pouco. Mas naquele tempo, no meu tempo de moleque, o povo renegava a gente de todo o jeito. Nós chegávamos numa praça, armava o circo perto de um terreno assim… as vizinhas gritavam: ´Prendam as galinhas que o circo está chegando…´, era isso que eles achavam que a gente era: marginal, bando de vagabundo que andava pelo mundo. (…) Pelo contrário, se eles soubessem o sacrifício que a gente tinha de chegar naquela cidade para dar alegria para eles… mas eles não entendiam isso…a gente lutava para ir naquela cidade…viajando de carro de boi, (…) e o circo tudo ali…a gente atrás andando…outros ficavam dentro do carro de boi… a maior parte a gente andava porque o carro anda devagar…(Ferreira).(6)
É presente nos relatos e nos memorialistas, o modo pelos quais os de fora – da cidade – se manifestavam de forma estereotipada quanto aos circenses. Entretanto, agora, interessa verificar qual é a elaboração presente nos relatos das fontes acerca destes “de fora”.
O preconceito era real, definições como “um meio equívoco”, “mulheres sedutoras, desavergonhadas e conquistadoras”, “homens vagabundos, desordeiros, desvirginadores de mocinhas”, estão presentes nos relatos das fontes. É preciso observar que o circense acaba por definir “os de fora” de uma forma homogeneizadora, do mesmo modo que os “de fora” faziam com os “circenses”.
Esta reflexão é importante, pois mesmo considerando real o preconceito e o controle social, não se pode tomar “os da cidade” como um grupo uniforme. Esta uniformidade é dada pelo olhar do circense, pois o que fica claro é que o grupo circense, a princípio, considerava que “todos os de fora” tinham idéias preconcebidas em relação a eles.
Por parte dos circenses este era um processo tenso, que no seu entendimento estava instalado na relação do “nós, os da lona” com “eles, os de fora”, como se fossem dois momentos de “ação e reação”, em que apenas diferenças existissem, em um movimento de resistência permanente. Entretanto, esta tensão deve ser entendida como decorrente do modo como os circenses ao mesmo tempo se identificavam e se distinguiam com os “de fora”; havia e há diferenças e semelhanças de significações sobre a família e o trabalho. Esta tensão era permanentemente mediada pela tradição, levando o circense a elaborar o seu modo de trabalhar e o seu modo de constituir-se como família. Isto garantiu a produção e reprodução deste circo-família como um espetáculo singular.
Ao mesmo tempo em que garantiam em seu “território” a preservação do modo de se constituírem como um grupo singular, o controle externo deste modo de vida fazia com que, para serem aceitos, sentissem necessidade de demonstrar que eram possuidores daquelas mesmas características constituidoras da sociedade externa, porém sob uma ótica própria daquele grupo. O circense dentro de sua singularidade, sempre esteve em total sintonia com aquela sociedade; diferentemente dos ciganos, tinham como proposta desenvolver estratégias para serem aceitos ou agradar a população à sua volta.
As constantes tarefas de “agradar” e “levar alegria” eram acompanhadas da tentativa de se proteger, de voltar “para dentro da cerca”, a fim de garantir a manutenção do circo-família. Esta proteção muitas vezes resultava em brigas corporais, prisões e na saída imediata do circo da cidade.
O fato de serem tratados como vagabundos gerava conflitos, embora conflitos maiores ocorressem quando estava envolvida tanto a família restrita quanto a família ampliada. Em todas as entrevistas realizadas para este estudo e nos relatos dos memorialistas circenses, foram citados vários momentos em que foi necessário defender “a família circense” de ataques pejorativos. Arrelia, ao relatar uma briga ocorrida em um jogo de futebol, quando pequeno, refere-se a uma expressão que um dos meninos teria lhe dirigido, muito comum naquela época:
– É isso que eu sempre disse! Esse cara não passa de gente de
circo! Aquela expressão ´gente de circo´ foi, para mim, o maior insulto do mundo! Avancei para o Paim e… Novo bolo! (…) Eu estava desolado, porém orgulhoso, porque lavara daquela expressão ´gente de circo´ qualquer qualidade ofensiva, que pudesse atingir minha mãe, meu pai, meus irmãos e os demais membros da minha família.(7)
Observa-se neste relato que Arrelia parte para um confronto físico indignado com o que a frase “não passa de gente de circo” lhe provocava imediatamente, como circense. Ouve o insulto como dirigido à mãe, ao pai e à sua família como um todo. O que se pretende destacar é o modo particular como o circense trabalha com esta questão. Na sua indignação, Arrelia parece estar querendo afirmar sua igualdade por também pertencer a um agrupamento familiar, mostrando estranheza quanto ao fato do “outro” não respeitar esta condição. Em outros relatos, como o de Ferreira, citado abaixo, está explícita a estranheza em relação a esta situação de hostilidade, que acabava por defini-los com características estereotipadas, que não condiziam com o seu modo de viver, segundo sua própria perspectiva.
(…) Nós também não sabíamos o porquê que o povo marginalizava a gente. Nós éramos pessoas que vínhamos para trabalhar, as mulheres não saiam para serem prostitutas na rua. Morava nas suas barracas… então eles achavam que as mulheres de circo não prestavam…que eram prostitutas…agora porque disso…nós não podemos dizer o porquê que o povo da cidade achava que gente de circo não prestava…que o homem de circo era vagabundo…que era ladrão…
Nosso circo, por exemplo, no meu circo no tempo de moleque, nunca ouvi falar que no circo uma pessoa fosse roubar. Nunca nenhum homem e nenhuma mulher que fosse fazer prostituição na rua… porque disso eu não sei…era porque não era da cidade, chegava na cidade… (Ferreira)
A organização do trabalho e o processo de socialização / formação / aprendizagem conformaram um indivíduo cuja referência era a manutenção e preservação do circo como um lugar de tradição e de família, causando “estranheza” o fato de que isto não fosse reconhecido. Definiam-se da mesma forma que a sociedade sedentária, referindo-se a tudo que era diferente, como “eles”, os da cidade, os estranhos ao “nosso mundo”, os que não nos aceitam ou não entendem como “nós” somos, “nosso” modo de morar, de trabalhar e de viver.
Assim, não é difícil concluir que, para o circense, estava sempre presente a possibilidade de tensão e conflito no contato com a sociedade envolvente; ainda que reconhecessem que maravilhavam e apaixonavam seus espectadores. Disto resulta a necessidade de, no dizer de Arrelia, “lavar daquela expressão ´gente de circo´ qualquer qualidade ofensiva” com relação ao circo e sua família; bem como a necessidade de Ferreira a todo o momento firmar: “éramos trabalhadores, não éramos vagabundos, nossas mulheres eram mães de família, não saiam nas ruas para se prostituírem”.
Para todos os entrevistados e memorialistas circenses, faz parte do ser circense ter que lidar com o corpo: saber olhar para o público, saber subir um degrau com ponta de pé, movimentar braços e pernas mesmo em um número “pesado” como o trapézio, de tal forma que o corpo se torne leve e sensual. Era inerente ao conjunto que representava o circo-família a produção desta “magia”. O circense completo deveria ser portador da “magia” de atrair o público. O público deveria ser cativado por esta “magia”.
Nesse jogo, o circo-família “andava em cima de uma corda bamba”, pois se de um lado tinha que desenvolver estratégias de atração dos “de fora”, reafirmando para si e para aqueles que seu território era um espaço de realização artística que portava magia e convidava ao fascínio, por outro, não podia deixar de tornar evidente, cotidianamente, que era família, tinha moral, e que realizavam um trabalho, ainda que diferente.
Não há como negar que na relação dos circenses com o seu público desenvolva-se uma arte de agradar como estratégia; o público deseja a sensualidade, a magia e o fascínio, e o circense atua nesta direção. Nestas estratégias, os circenses procuram aprimorar toda a sua capacidade de aliar competência técnica e destreza de movimentos, com uma estética de atração, uma estética sedutora.
Assim, o circo tornava-se um espaço privilegiado para o encontro do exótico, do fantástico e do mágico, através, também, da linguagem corporal, num período no qual, pode-se afirmar com certeza, nenhuma outra manifestação artística (nem mesmo grupos teatrais), era vista pela maioria dos municípios brasileiros.
Esta tensão é perceptível, principalmente, entre as mulheres circenses. No picadeiro explodem, expressando artisticamente todo o aprendizado da técnica e da estética sedutora, procurando realizar com a máxima perfeição o seu papel na apresentação do espetáculo. Mas, quando têm que falar sobre esta situação, apresentam-na em um esquema restritivo, silenciando, nos seus relatos, sobre este assunto; reportando-se sempre à reafirmação do fato de serem mulheres de família, que têm que exercer uma tarefa como artista.
É engraçado isso, né! Você vê, eu aprendi quase tudo no circo, fiz muitos números. Eu e minhas irmãs éramos atrizes nos dramas de primeira grandeza. Mas sempre tinha alguém na platéia ou na cidade toda mesmo, que achava que a gente estava ali só para mostrar nosso corpo…achavam que a gente era…sei lá…e a gente trabalhava tão direitinho. Parecia que a cidade não considerava mesmo o povo do circo. Ah! Mas tinha cidade que recebia a gente muito bem…mas não faltava aqueles que vinham com deboche. Aí você já viu, meu pai ficava bravo com eles, mas era muito rigoroso com a gente também. (Alzira)
E uma freira que chegou assim, uma vez, numa matinê, nós estávamos fazendo um número de escada, ela chegou e falou assim para nós: ´como vocês são bonitinhas, mas vocês ficariam tão bonitinhas se vocês vestissem uma roupa mais decente´, nós estávamos de calção até o joelho, o corpetinho vestido até em cima. E nós, vestidas para trabalhar ali, e vem a freira com uma porção de crianças: ´ai que gracinhas que vocês são, mas vocês ficariam mais bonitinhas, nosso Senhor ia gostar muito mais de vocês se vestissem uma roupa mais decente´. O preconceito era um problema sério.” (Yvone).(8)
“…infelizmente mulher de circo não presta, alma de circo não presta, gente de circo não presta. Em geral, eles podem achar ótimo, você é formidável, tudo ótimo, mas na primeira discussão era a primeira coisa que você escutava: ´Logo vi que é de circo, gente de circo não presta, mulher de circo não presta! Porque mulher de circo não presta? Então ela é dona de casa, cozinha, borda, lava roupa, faz tudo o que uma dona de casa faz. E de noite ela se torna uma estrela…” (Carola).(9)
Os circenses, em particular a mulher circense, aprendiam que era “natural” portarem-se com graça e leveza no picadeiro mas, ao mesmo tempo, isto era algo que parecia contradizer a moral vigente. Mais ainda, o que realizavam no circo anulava o fato de serem portadoras de saberes, que as tornavam, junto com os homens, portadoras de uma tradição de profissionais circenses, não eram consideradas trabalhadoras, mas apenas “chamariscos” por “exporem” seus corpos.
Ao mesmo tempo em que se obrigam a se reconhecerem no exercício do seu ofício, tinham que produzir uma distinção relativa a como este seu exercício era compreendido.
Nos relatos, as entrevistadas apontam exatamente o oposto. As mulheres referem-se às rígidas regras morais a que estavam submetidas no espaço do circo-família sob o ponto de vista das relações patriarcais constituídas, que “exigia” da mulher do circo o mesmo comportamento “exigido” pela sociedade. Era preciso que se comportassem de forma a demonstrar sempre que tinham “muita moral”. Fora de seu “território” a mulher circense era vigiada não só pelos moradores da cidade, como também pelos seus próprios companheiros.
Nosso pai era bravo demais…O nosso irmão Nuto, era fogo para nós. Não podia namorar. No baile não podia dançar junto que ele tirava do baile. Tinha muita moral. Até para vestir… as roupas era cobrindo o calcanhar. No início nós trabalhava de calça de meia, aquela inteiriça, sabe? Para mulher do circo era muito pior do que para o homem. (Alzira)
O homem circense cobrava da mulher, de modo vigilante, uma postura permanente de afirmação de sua moralidade. Mas, quando em contato com os “de fora”, tanto homens quanto mulheres circenses descrevem a discriminação sofrida por elas, recomendando que não se expusessem a relacionamentos fora de seu “território” devido às conseqüências da segregação que iriam sofrer.
Você vê… quando acontecia de alguém do circo casar com gente da cidade, se era o homem trazia a mulher para ser artista, se era a mulher era difícil o homem ir para o circo, era ela que ia embora. Mas isso era muito raro acontecer, porque dava muito problema mesmo… (Alzira)
– Querem saber? Mulher de circo só deve casar com homem de circo. Todas, que vi casarem com rapazes de outras atividades, acabaram mal, sofrendo como intrusa o constrangimento da família do esposo, para serem abandonadas três meses depois.(10)
Apesar da clara posição patriarcalista de chefe de clã do homem circense, como aquele que respondia constantemente à sociedade exigindo que suas mulheres se comportassem “dignamente” para fora de seu “território”, o circo-família, através do processo de formação e aprendizagem e da organização do trabalho, mediados pela tradição, não discriminava dentro de seu “território” as meninas e os meninos como os portadores da tradição. Não era possível naquele modo de organização que uma pessoa, homem ou mulher, desconhecesse todo o processo de organização do circo.
As mulheres entrevistadas concluem ser necessário o comportamento patriarcal, primeiro como um esquema de proteção e segundo porque não eram apenas elas que estavam sendo hostilizadas, era o circo como um todo: o seu trabalho, a sua moral, a sua família. À medida que eram defendidas pelos companheiros, também o era o circo-família. Observa-se que os problemas com as mulheres são deslocados, transformam-se em problemas do circo como um todo, e não pertinentes apenas a elas.
“Por exemplo, se um cara vinha e falava para uma das irmãs ´oi gostosa´, eles iam e ´ó, batiam´, para mostrar que a gente era de família, que nós somos gente. Então era uma luta, nós lutamos muito para mostrar a moral de família.” (Yvone)
Este modo tenso de viver – à noite na apresentação do espetáculo expondo o corpo, e realizando gestos suaves, produzindo movimentos e desafios acrobáticos, representando uma peça teatral; e de dia, vivendo não somente uma dinâmica familiar centrada no patriarcalismo, na moralidade rígida – é enfrentado pelo circense de um modo que reforça as suas relações com a natureza do seu trabalho e com as suas características familiares, o que resulta em não falar (homens e mulheres) sobre os seus “jogos de sedução”, para que não fossem confundidos com aqueles que comercializavam a sedução na direção da prostituição.
Apesar daquela relação tensa, não abandonavam o seu território, o que era evidenciado através do constante trabalho de aprimoramento técnico e artístico, implicado na produção e reprodução do circo como espetáculo, para que à noite este fosse apresentado no picadeiro. Este processo tinha que, diariamente, “romper” com a tensão vivida pelos circenses, em um movimento que permitia a manutenção de todo o conjunto entendido neste estudo como circo-família.
A tradição era permanentemente “fabricada”, que pressupunha não a estagnação, mas sim ações que continham (e contêm) permanências e transformações, o que, somente desta forma, possibilitava tratar positivamente aquela tensão, mesmo sendo posta à prova a cada minuto. O processo de socialização / formação / aprendizagem pelo qual passava o circense assegurava que a tradição fosse preservada e mudada constantemente, por isto conseguiu manter-se no formato de circo-família até pelo menos a década de 1960. A solução destes problemas era dada em seu próprio território, mesmo que parte deles fosse resolvida por meio de confrontos. Ser um (a) “artista circense” e “pertencer a uma tradicional família circense” garantia a produção e reprodução do circo-família.
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1-Este texto é baseado na minha dissertação de mestrado defendida em 1996 sob o título: O circo: sua arte e seus saberes. O circo no Brasil do final do Século XIX a meados do XXI.
2-Duarte, Regina Horta – Noites Circenses – Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1995, p. 19.
3- Idem, p. 93.
4- Garcia, Antolin – O Circo (a pitoresca turnê do circo Garcia através à África e países asiáticos). São Paulo (SP). Edições DAG. Escrito em 1962 e publicado em 1976, p. 65.
5- Alzira Silva (1910-1989), entrevistas realizadas em 03.05, 31.05 e 21.06.1985.
6- Antenor Alves Ferreira (1915-2004), entrevista realizada em 10.06.1985.
7- Waldemar Seyssel – Arrelia e o circo. Memórias de Waldemar Seyssel. São Paulo (SP). Edições Melhoramento, 1977, p. 185. 8- Yvone da Silva (1930-), entrevistada em 09.07.1985.
9- Andréa Françoise Carola Boetes (1937 -), entrevistada em 03.02.1993.
10- Garcia, A. – op. cit., p. 66.
Publicado na Revista SARAO – volume 3, número 6, março de 2005. (http://bibmemoria.cmu.unicamp.br/sarao)