As artes circenses, hoje, são constituídas por uma multiplicidade de agentes, modos de organização do trabalho, formas de produção e lugares de apresentação que fazem com que adquiram uma capilaridade única, diferente de alguns períodos históricos anteriores.
No entanto, quando artistas, pesquisadores e produtores sentem a necessidade de definir que tipo de artistas circenses são ou em qual categoria se encaixam, enquadram essa multiplicidade de lugares, saberes, relações, trocas, principalmente do circense brasileiro, em apenas duas únicas formas de visão histórica: ou são contemporâneos, pois não são da lona, ou são tradicionais, pois são da lona. Como se o cotidiano da vivência e da produção das artes fosse passível de definições tão dicotômicas. Em última instância, parece-me que a questão é esta: por que a necessidade do agente precisar ser reconhecido dentro de uma categoria com fronteiras tão delimitadas? Com isso pensa estar produzindo uma definição que obedece aos critérios estéticos e não só de origem (lona, família, tradição).
“Novos, contemporâneos” e “tradicionais” disputam o poder dos saberes. Os primeiros dizem, inclusive, que estão do lado do “discurso científico”, enquanto, os segundos creem que são herdeiros diretos da tradição e, com isso, os únicos conhecedores de fato do que é ser circense.
Não há dúvida de que os processos de formação e organização do trabalho nos vários modos de se constituir artista circense, em particular nestes dois grupos, são distintos. Mas esses processos distintos, com diferentes lugares, pessoas, técnicas, tecnologias e metodologias, não garantem por si que sejam tão distintos. Quando abrimos o foco para a produção da linguagem circense, nada mais tradicional que um novo.
É obvio que em todo processo histórico de constituição, qualquer grupo social passa por transformações, mas quando os circenses apontam suas diferenças querem sugerir que estão baseados naquilo que gera um espetáculo com essa ou aquela estética, com diferenças tecnológicas que fariam um artista ser novo ou tradicional.
Entretanto, quando falamos em qualquer produção artística em geral (seja circo, pintura, escultura, dança, música, teatro etc.), mudanças, transformações e permanências dão sentido a todas elas.
Tanto de um lado como do outro, os discursos dos dois grupos apontam para “quando tudo começou”, e como regra, sempre a partir deles mesmos: os tradicionais são os legítimos representantes das artes circenses; os que iniciaram formação e aprendizagem fora da lona ou de um grupo familiar itinerante são os legítimos fundadores de uma “nova” forma de fazer circo que “não deve nada ao antigo e tradicional circo”.
Ambos os grupos desconhecem o processo histórico de constituição das artes circenses. Ao longo de quase 300 anos de existência dessas artes, incontáveis vezes artistas, grupos, empresários, produtores, diretores, inventaram, transformaram, mudaram a forma de se fazer circo. Se analisarmos o cotidiano da produção circense nesses três séculos, vemos que os espetáculos e os números passaram por estéticas, configurações, incorporações tecnológicas tantas vezes, que é possível afirmar que os homens, mulheres e crianças que estiveram presentes na construção do circo, desde o final do século XVIII até hoje, independente do lugar e do modo como se deu a transmissão, mantiveram a característica da linguagem circense como um método pedagógico que se define em um processo de produção constante de saberes e fazeres. Uma escola permanente foi o que manteve o circo na moda.
Mas, então, não existe o novo? É claro que sim, mas não onde é apontado: na estética, no espaço onde ele trabalha (seja no picadeiro, no palco, na rua, na praça, no ginásio, no galpão etc.), pois a produção circense sempre foi e deve ser um diálogo tenso e constante com as múltiplas linguagens artísticas de seu tempo. É no processo de ensino/aprendizagem e no modo de organização do trabalho que se passam as transformações.
Breve contextualização histórica do circo no Brasil
O advento das escolas de circo no mundo, assim como no Brasil, é o fato realmente novo na história dessa arte: antes, os saberes do circo eram passados na lona, nas escolas permanentes e itinerantes que eram os circos itinerantes; hoje, cada vez mais artistas se fixam em determinada cidade e passam seu conhecimento em troca de remuneração, quando não estão inseridos em projetos governamentais e não-governamentais, com um salário. É um modo de produção distinto daquele das relações de formação e de trabalho que se estabelecia (e ainda se estabelece) nos circos-famílias.
Naturalmente, essas novas formas de inserção das escolas nas cidades proporcionaram um crescimento no número de artistas no mercado. Há no Brasil, hoje, perto de uma centena de escolas de circo, entendidas como estabelecimentos ou iniciativas que, embora possam não ter sede própria, ministram aulas de algumas técnicas circenses regularmente.
Há escolas em todas as regiões do país, de todos os formatos, estilos e capacidades: profissionalizantes, de lazer, de cunho social e, portanto, gratuitas; escolas caras, baratas, que funcionam em espaços públicos, em espaços privados, que têm muitos professores ou apenas um professor.
Na segunda metade da década de 1980, com as primeiras experiências de Escolas de Circo no Brasil surgiram propostas de desenvolvimento de projetos sociais – de iniciativa de grupos governamentais e de organizações não governamentais –, que viam no aprendizado circense em geral e não somente nas técnicas, uma forma de educação/recreação/cidadania. Na sua maioria, essas ações eram (e ainda são) destinadas a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, desvinculadas ou não de processos educacionais, sociais e culturais, sem oportunidades de acesso a lazeres e entretenimentos.
Essas experiências, denominadas de circo social, privilegiam linguagens artísticas, especialmente a circense. O circo, entendido como todo o conjunto de saberes presentes em sua elaboração, enquanto linguagem, é utilizado como instrumento de aproximação/motivação dos grupos com que se deseja trabalhar, tendo em perspectiva o seu uso como ferramenta pedagógica de valorização dos diferentes saberes dos educandos, como parte da experiência de vida dos mesmos.
Pensar na utilização da linguagem circense como ferramenta no processo pedagógico, incluindo a música, o teatro, a dança, a capoeira, a cenografia e o figurino é, portanto, voltar-se para um novo sentido de produção coletiva do saber.
Aprender a fazer circo, pensado como uma atividade entre as culturais, artísticas e esportivas, pode fazer das meninas e meninos aprendizes/mestres permanentes, características definidoras do circo-família.
É importante destacar que o uso da linguagem circense como ferramenta pedagógica não toma o circo como algo que está “naturalmente” inscrito no campo social, devido aos seus valores “universalmente compartilhados”, como solidariedade, sentido de responsabilidade e respeito. Pois, como ferramenta ou dispositivo pedagógico, a aprendizagem da linguagem circense não é isenta na maneira como é pedagogicamente utilizada, sendo totalmente dependente dos sujeitos que a operam e de seus projetos societários; portanto, não há um sentido necessariamente positivo no uso dessa linguagem, por si só.
Quando um jovem torna-se muito bom num determinado número, o campo de oferta nessa área é tão amplo que um novo desafio se coloca, tornando-o aprendiz em outra área, como: tocar um instrumento, representar no teatro ou mesmo ser autor das peças e músicas, participar da confecção do guarda-roupa, da cenografia, da iluminação, da produção do espetáculo.
Ao mesmo tempo em que a criança e o adolescente estão aprendendo um novo campo do saber/fazer, eles também poderão se transformar em mestres naquilo em que se tornaram virtuosos. Toda essa forma de construção dos saberes atende a pessoas de todas as idades e faixas sociais, que podem ou não desenvolver atividades físicas. Nesse modo de educação permanente, como na tradição do circo-família, não há criança, adolescente, adulto ou idoso excluído do processo de produção da magia.
Acrescente-se a esses novos modos de produção da linguagem circense – a escola de circo e o circo social –, o circo feito e estudado na academia. Somente na década de 1970 é que o tema circo foi foco de pesquisa universitária. Alguns pesquisadores da Universidade de São Paulo, em suas pesquisas para mestrados e doutorados nos cursos de História, Ciências Sociais, Política e Antropologia, voltaram-se para o estudo dos lazeres da classe operária e escolheram o circo como meio para chegar ao que essa classe fazia quando não estava nas fábricas. Utilizando metodologias da sociologia e antropologia, localizaram diversos circos que estavam na periferia da cidade de São Paulo e iniciaram suas pesquisas por meio da observação do cotidiano dos circenses, assistindo aos espetáculos, bem como os entrevistando.
Entretanto, somente a partir da década seguinte, até como resultado de um intenso trabalho de militância política/pesquisa/ação, de muita gente, houve um aumento da pesquisa sobre o circo nas universidades.
Ficou por conta dos vários profissionais artistas circenses não ligados à academia, mas vinculados a processos pedagógicos de formação nessa área, como as Escolas de Circo e a própria Escola Nacional de Circo (RJ), ampliarem suas ferramentas voltadas para alunos oriundos dos mais diversos lugares da sociedade. Eram e são o que denomino de novos sujeitos históricos, sociais, políticos e culturais circenses, pois já tinham formações circenses, mas não se vinculavam a nenhum grupo familiar. Muitos daqueles alunos eram (ou são) universitários de institutos de artes cênicas (teatro, dança), de música, de educação física, de história, jornalismo, arquitetura, entre outros que ainda desconhecemos.
Mesmo que ainda não haja um acompanhamento em quantidade do corpo docente nos cursos de artes, há um aumento significativo de alunos aprendendo e fazendo circo. Isso gerou, nesses últimos 15 anos, um aumento proporcional de trabalhos de iniciação científica, monografias ou conclusão de cursos, mestrados e doutorados voltados para a pesquisa das artes circenses em todas as cidades brasileiras que possuem campus universitário. Para se entrar em contado com uma pequena mostra dessa produção acadêmica, sugere-se pesquisar o link “Biblioteca Virtual – Trabalhos Acadêmicos” do www.circonteudo.com, site que eu, Daniel de Carvalho Lopes e Giane Daniela Carneiro coordenamos.
À parte dos estudos universitários, houve incitativas de pesquisadores que geraram trabalhos de referência, como eu mesma, Alice Viveiros de Castro e Verônica Tamaoki, por exemplo. A primeira, com vínculo de militância política e cultural voltada para o circo e a segunda, aluna da primeira turma de escola de circo fora da lona, no Brasil (a Academia Piolin de Artes Circenses).
Um dos fatos que ampliou significativamente as pesquisas sobre circo realizadas no Brasil por pesquisadores artistas, acadêmicos ou não, foram as iniciativas públicas nos últimos seis anos, que se voltaram para a área da cultura e possibilitaram ampliar as ações artísticas e de pesquisas em vários campos.
Na área circense, numa conjugação de anos de militância política em prol de uma relação transparente dos investimentos no setor, em prol do fim de uma relação clientelista e em prol de políticas públicas voltadas exclusivamente para as artes circenses, a partir de 2001, foram instituídos os editais da Funarte. Um desses editais em particular foi o Prêmio Carequinha de Estímulo ao Circo, que possibilitou a expansão não só dos subsídios destinados à pesquisa, como também do próprio significado, entre circenses tradicionais e novos, do que seja pesquisa. Não havia um entendimento de que quando se produz um número ou espetáculo há a necessidade de pesquisa. Desenvolveu-se, então, a compreensão da importância de se fazer a pesquisa dos processos históricos circenses brasileiros. Nesses últimos anos, o debate que temos realizado sobre a necessidade do reconhecimento do circo como patrimônio cultural brasileiro possibilitou não só que os novos entrassem em contato com a riqueza da história do circo no Brasil, mas também que os “tradicionais” revitalizassem sua memória.
Com todo esse caldo de movimentos voltados para a recuperação das memórias circenses, o tema do circo se fez muito presente no cotidiano das cidades, em toda sua capilaridade, principalmente no dia-a-dia dos vários artistas. Isso possibilitou tanto que os velhos circenses retornassem à cena quanto que surgissem novos sujeitos históricos, sociais, políticos e culturais realizando técnicas circenses nas ruas, semáforos, shoppings, festas raves, rodeios, desfiles de carnaval, boates, aniversários, casamentos. Enfim, não há praticamente, hoje, nenhum evento e espaço em qualquer município, independente do tamanho, onde não se veja uma pessoa desempenhando uma atividade artística circense. Até a década de 1970, a atividade circense era realizada quase que exclusivamente sob a lona.
Após o surgimento das escolas de circo e do circo social no Brasil, começaram a se difundir festivais, encontros, seminários, mostras, entre outros eventos dessa natureza, que possibilitaram, entre outras coisas, a ampliação da prática das artes circenses nas praças e ruas.
Com todo esse movimento, nos últimos 40 anos, no Brasil, o que se observa é que a linguagem circense, também chamada técnica ou atividade circense, tornou-se uma prática que transcendeu o ambiente do circo de lona e as próprias escolas especializadas. Nesse sentido, há muito tempo tem despertado interesse, em particular de academias de ginásticas e clubes, ampliando ainda mais o número de sujeitos praticantes dessas atividades.
Os artistas formados no circo social e nas escolas de circo, que também se tornaram formadores nesses espaços, moradores fixos, desenvolvem novos modos de organização do trabalho. Esses desdobramentos têm criado novas necessidades para a produção do conhecimento sobre o circo, gerando novas demandas para a ampliação de pesquisas. Tudo isso é de fato novo na história do circo.
Os novos sujeitos históricos construtores desse rizoma que representa a linguagem circense, oriundos de escolas, do circo social, autodidatas, autônomos, que são moradores fixos das cidades, estabelecem relações sociais, políticas e culturais com as mesmas que os circenses do chamado circo itinerante ou tradicional não estabelecia. O grupo circense chegava (e ainda chega) na cidade, bairro, vila ou rua, povoava a imaginação de todas as pessoas de qualquer classe social, mas depois de algum tempo ia embora. Esses novos fazedores de circo, que não vão embora como um itinerante, relacionam-se com os habitantes, procuram explorar cada evento, canto ou espaço para se apresentarem.
Nessas relações de afecções são construídas demandas políticas importantes, tanto para o nível local quando nacional. Por exemplo, há hoje uma luta política por espaços públicos para apresentações, há envolvimento nos debates políticos das instâncias governamentais municipais, estaduais e federal, voltados para se conquistar direitos nunca antes dirigidos aos grupos.
Nos últimos anos oito anos foi constituída, pela Funarte/Minc, a Câmara Setorial do Circo que hoje é denominada de Colegiado. Também temos representantes circenses no Conselho Nacional da Cultura. No entanto, diferentemente de outros países, as relações políticas não são constituídas e produzidas apenas pelos novos sujeitos históricos, mas com os circenses ditos tradicionais. Mesmo com debates tensos, há diálogo, produção conjunta, espetáculos onde todos os distintos participam dos mesmos palcos/picadeiros/praças.
O circo social, nestes últimos 20 anos, reuniu uma grande quantidade de pessoas que fazem parte da luta pela cidadania. A Rede Circo do Mundo, por exemplo, composta por ONGs de circo social no Brasil inteiro, é uma das referências mais importantes na luta pelos direitos da infância, da educação etc., feita, muitas vezes, pelos mesmos jovens atendidos nessas instituições.
Por outro lado, para que os jovens artistas oriundos de escolas de circo, circo social, autodidatas, autônomos, de forma completamente distinta da geração circense de meu pai, possam ter minimamente uma inserção profissional, é necessário que adquiram conhecimento sobre os debates governamentais da área da cultura e da educação, que saibam disputar os editais de financiamento de projetos e, para isso, precisam aprender a escrevê-los, precisam procurar formação em autogestão, planejamento, execução de projetos, etc.
Até a geração de meu pai, tudo isso se aprendia cotidianamente no processo de socialização/formação/aprendizagem. Quando da formação do circo-família os aprendizes eram do grupo “família estendida circense”, ou seja, todos eram de alguma forma “aparentados”, e eram mais “protegidos” do que são os circenses, hoje, “fora da lona”.
Nas escolas de circo e no circo social, a diversidade social, cultural e política dos grupos que vão aprender/fazer/brincar circo é de uma complexidade passível de muitos estudos e pesquisas sociológicas, antropológicas, educacionais, históricas, entre outras.
Assim, todos aqueles envolvidos no processo de formação de formadores têm que ser artistas/pedagogos/arte-educadores, pois a população aprendiz nesses espaços difere totalmente dos aprendizes do circo-família.
Além das questões pedagógicas, da formação e das políticas institucionais, há também as relações externas. Quer dizer, até pelo menos as décadas de 1950/60 o circo-família “andava em cima de uma corda bamba”, pois se de um lado tinha que desenvolver estratégias de atração dos “de fora”, reafirmando para si e para aqueles que o circo era um espaço de realização artística, que portava magia e convidava ao fascínio, por outro, não podia deixar de tornar evidente, cotidianamente, que era família, tinha moral, e que realizava um trabalho, ainda que diferente. Não há como negar que na relação do circense com seu público desenvolvia-se uma arte de agradar como estratégia.
Os novos sujeitos circenses moradores e fazedores de circo nas cidades estabelecem uma relação distinta dos circos itinerantes daquele período. Para aqueles, estava sempre presente a possibilidade de tensão e de conflito no contato com a sociedade envolvente, ainda que reconhecessem que maravilhavam e apaixonavam seus espectadores. Havia uma movimentação de resistência, porém com pouco sentido de coletivo.
A partir da consolidação dos artistas circenses urbanos, oriundos dos mais distintos setores econômicos, sociais, culturais e políticos da sociedade, foram se formando organizações políticas que disputam as várias frentes governamentais (municipal, estadual e federal) e da sociedade civil. Em 2003, quando se iniciou a reestruturação da então Associação Brasileira do Circo (Abrac), única entidade do gênero no Brasil naquele período, hoje denominada Abracirco, houve um encontro da diversidade circense brasileira: estavam presentes inimigos históricos, grupos que nunca se “bicaram”, como escolas de circo e circos itinerantes ou tradicionais.
Atualmente vem se constituindo entidades representantes da classe circense em um número cada vez maior, sendo que a Associação de Famílias e Artistas Circenses (Asfaci, SP), a Cooperativa Paulista de Circo (SP), a Cooperativa de Circenses da Bahia (BA), a Rede Circo do Rio (RJ), a União Brasileira de Circo Itinerante (UBCI, SP) e a Associação Brasileira de Escolas de Circo (Aecirco, MG) estão entre as mais ativas, e possuem como associados circenses de todos os lugares: escolas, circo social, circo itinerante, proprietários, artistas empregados, autônomos, autodidatas, professores.
Aliás, é importante uma ressalva: pelo que tenho visto de experiências fora do Brasil, são poucos os países nos quais os grupos que, mesmo tendo tensões e diferenças significativas, procuram manter pontos de contato, como aqui.
Mesmo porque os principais mestres formadores da maioria dos circenses nas escolas de circo e que estiveram na formação dos projetos de circo social são oriundos do chamado tradicional, quase que produzindo um certo lastro comum entre todos.
Entre a maioria dos circos itinerantes existentes hoje, observa-se que há proprietários de circo, em geral com suas famílias, que contratam outras famílias e/ou artistas que trabalham sozinhos. Poucos empresários circenses, no entanto, se responsabilizam pelo ensinamento das crianças do circo tanto para se tornarem artistas quanto para sustentarem vínculos com as instituições escolares. Mas é importante entender que, apesar do significado do que era ser um “artista completo”, a definição de artista circense não está mais pautada na filosofia dos grupos circenses itinerantes, mesmo que os artistas de hoje sejam formados por grupos familiares.
Ao contrário desse modo de organização do trabalho, os artistas circenses oriundos de escolas, do circo social, autodidatas etc., raramente têm como perspectiva de futuro trabalhar em um circo itinerante. Na sua maioria, realizam seus trabalhos nos múltiplos espaços das cidades. Além disso, participam e organizam eventos, festivais, encontros, entre outros. Formam grupos (de dois, três até mais artistas) e criam espetáculos como forma de apresentações. A quantidade de grupos e artistas individuais circenses hoje, no Brasil, supera, e muito, a quantidade de circos itinerantes de lona. Muitos deles se vinculam também aos projetos sociais como professores, monitores, diretores etc.
Dentre esses grupos, alguns têm projeção nacional e internacional, como: Parlapatões, Patifes e Paspalhões, Circo Mínimo, Teatro de Anônimo, Intrépida Trupe, La Mínima, Afro Circo Cantagalo, ligado ao Grupo Cultural AfroReggae, Troupe da Escola Pernambucana de Circo, As Marias da Graça, Corpo Mágico, Seres de Luz, Circovolante (para uma mostra um pouco maior, ver o link “Artes e Artistas” do site Circonteúdo). Em sua maioria, são grupos que constituem microempresas ou ONGs e, nesse sentido, estão institucionalmente mais organizados que a maioria dos circos itinerantes, que ainda encontram muitas dificuldades, de muitas ordens, inclusive econômica, para conseguirem minimamente o registro do CNPJ.
Há no Brasil, um caso interessante, o do Circo Zanni, formado por diversos grupos constituídos legalmente e que formaram uma espécie de cooperativa. Durante alguns períodos se juntam, produzem um espetáculo por ano e possuem uma lona com capacidade para em torno de 500 espectadores.
Para concluir, gostaria de lembrar que há 300 anos a linguagem circense, em seu modo rizomático de se constituir, passou por transformações amenas e radicais. São muitos os exemplos de diferentes modos de produção do espetáculo que só confirmam a ideia de que para ser considerado mesmo um artista circense é preciso ser contemporâneo sempre – seja em 1850, 1900 ou 2011. Quem não consegue estar em sintonia e sinergia com seu tempo cultural artístico, está engessado, sem movimento. Não podemos dizer isso de nossos antepassados ligados ao circo, muito pelo contrário.
Ser circense contemporâneo quer dizer viver no mesmo tempo, no tempo atual. Ou seja, quando alguém me diz “sou circense contemporâneo”, está querendo dizer que vive no mesmo tempo histórico do Circo Spacial, do Circo Zanni, do Circo do Fuxiquinho (do Rio Grande do Norte), dos artistas do semáforo, das ruas e praças, dos tradicionais que voltaram a se apresentar nas escolas de circo, dos artistas do circo social. Enfim, quer dizer muito ao mesmo tempo em que não explica nada. Em algo os novos artistas do circo não diferem do que havia antes deles: são exatamente iguais aos seus antepassados, são produtores do novo o tempo todo. Ter como característica a contemporaneidade – em sua expressão estética, artística e tecnológica, não é uma novidade, é constitutivo.