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Picadeiro feminino

No mundo do showbiz alternativo, as mulheres ganham destaque e provam que é possível viver de arte

Joana deixa a plateia boquiaberta quando se apresenta pendurada pelos cabelos e, sorridente, faz acrobacias no ar. Mariana seduz com sua dança burlesca sobre um sofá e na pele de uma francesa de pileque, chamada Ninon, embalada ao som de Edith Piaf. Gabriella arranca gargalhadas como a palhaça Du’Porto, que retrata os inconstantes humores femininos, que vêm à tona durante a TPM. Cinthia parece voar sobre o trapézio, com graça e leveza.
Essas são algumas das mulheres que se transformaram em artistas circenses, mas que romperam os limites dos tradicionais picadeiros para dar o ar da graça em eventos, baladas, festas e até nos cabarés – tradicionais na Europa e incipientes no roteiro de atrações de São Paulo. O mais badalado é o Trixmix Cabaret, que virou programa na noite das primeiras quintas-feiras do mês e ajuda a valorizar o trabalho de muitas artistas talentosas.

A mentora do projeto é Raquel Rosmaninho, de 34 anos, que, junto com seu marido, o também artista de circo Emiliano Pedro, trouxe para o Brasil o formato do cabaré. Depois de uma longa temporada em Londres, onde os dois estudaram técnicas de acrobacia e malabarismo no conceituado The Circus Space, eles passaram a considerar essa proposta de espetáculo. “Faltava algo assim no Brasil: um espaço não convencional que reunisse uma variedade de números e os muitos talentos do País”, diz Raquel.

Quem vê essas mulheres no palco não deixa de se espantar com a coragem delas de trilhar por um caminho nem um pouco convencional. “Nunca me imaginei vivendo do circo”, confessa Joana Piza, de 31 anos, que tem duas filhas – Maria, de 4, e Anaí, de 7 – e é casada com o também artista circense Evens. “Hoje ajudo a sustentar minha família, graças a essas apresentações.” Com diploma em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a atriz se apaixonou pelo picadeiro ainda na faculdade, quando fazia uma pesquisa sobre a linguagem do circo.

Foi quando Joana conheceu o número chamado “força capilar”. Fascinada, decidiu aprender a técnica. Descobriu que o segredo para se pendurar pelos cabelos sem arrancar o couro cabeludo é a “amarração”: por meio de uma trança especial, forte e centralizada na cabeça, que recebe um gancho e, pronto, lá ela vai para o ar. Até pegar o jeito, a atriz e acrobata sofreu um bocado. “Quando consegui sair do chão pela primeira vez, até chorei de emoção”, lembra. Desde fevereiro de 2009, quando estreou com esse número, não tem lhe faltado convites.

Dança Circense
Não significa, porém, que viver dessa arte seja fácil. A carioca Mariana Duarte, de 37 anos, engrossa o orçamento com aulas de dança. Afinal, como outras profissionais, tem currículo admirável e passa longe daquela imagem de artista mambembe, que faz tudo no improviso e sem base técnica. Formada pela Faculdade de Dança Contemporânea Angel Vianna, no Rio de Janeiro, a bailarina veio para São Paulo com o objetivo de se especializar em vários cursos de dança e, paralelamente, acabou tirando diploma em Letras Clássicas na USP. Até que caiu de paraquedas numa escola circo.

“Uma amiga pediu que a acompanhasse, e acabei me matriculando nas aulas”, conta a artista, que atualmente integra o elenco da companhia Circo Mínimo. E se apaixonou pelas acrobacias aéreas, o que inclui trapézio, lira (círculo de ferro) e tecido. Mariana passou, então, a se apresentar em festas, casamentos, boates. Ao juntar técnicas de dança e circo, criou números burlescos, nos quais encarna personagens femininas marcantes, que abusam da sensualidade, mas sem vulgaridade nem apelo sexual.

Outra que se beneficiou das técnicas circenses foi a bailarina Cinthia Beranek, de 34 anos. Como Mariana, uma amiga a levou para as aulas de picadeiro e ela nunca mais largou. “Circo é como um vírus que toma conta do corpo e nunca mais vai embora”, justifica.

Mas nem por isso abandonou a dança, já que fez sua história como bailarina da companhia Cisne Negro, atuou em espetáculos do Cirque du Soleil, no Canadá, inclusive como coreógrafa, e até hoje apresenta-se com a trupe do Acrobático Fratelli. Ah, ela teve a honra de ser selecionada para ter aulas, durante uma semana, com Pina Bausch, a famosa coreógrafa alemã que faleceu no ano passado.

“Por mais que eu goste, a dança é mais restrita do que o circo”, avalia Cinthia, que, após oito anos entre Canadá e Europa, retornou ao Brasil há seis meses. “Por serem mais impactantes do que um solo de dança, as técnicas circenses despertam maior interesse do público e, portanto,abrem mais oportunidades de trabalho.”

Ao unir as duas linguagens – que é tendência mundial -, sua carreira deslanchou. E o dinheiro passou a vir com mais facilidade, depois de ter amargado temporadas sem um tostão no bolso, o que a obrigou a trabalhar como recepcionista da academia de um hotel, atrás de uma renda fixa.

“Essa época foi um pesadelo porque não tinha nada a ver comigo”, lembra a bailarina, que é formada em Letras pela Fundação Santo André. Até que uma amiga a resgatou desse trabalho, convidando-a para fazer parte da sua companhia de dança. Hoje, Cinthia se apresenta em espetáculos, dá cursos e faz muitos eventos corporativos.

Novo Status
O ingresso maciço de mulheres nas artes circenses está transformando essa profissão. Na história do circo, mulher tinha papel coadjuvante. Era quem desfilava sua beleza e sensualidade para segurar a capa do domador, do mágico e por aí vai. Se não estivesse no posto de objeto de desejo, era a aberração, protagonizando o show de horrores, destaca a atriz Gabriella Argento, de 34 anos, que hoje sobe ao palco para encarnar a divertida palhaça Du’Porto.

“Mas o Brasil é afortunado”, ressalta. “Por não ficar tão preso à tradição do circo e estar mais aberto a experimentações se vê hoje, por exemplo, cada vez mais mulheres fazendo cursos de palhaço.” Décadas atrás, isso era inimaginável. Formada em teatro, Gabriella engatou na “palhaçada” porque precisava de trabalhos esporádicos para reforçar sua renda. Até desenvolver sua personagem, a espevitada Du’Porto, investiu em cursos. Estudou com feras como a diretora de teatro Cristiane Paoli Quito, também professora da USP, e Leris Colombaioni, representante da tradição italiana do palhaço.

Com anos de estrada, foi selecionada para atuar no mega-espetáculo Ka, produzido pelo Cirque du Soleil, que está em cartaz até hoje em Los Angeles. Durante os dois anos em que participou, orgulha-se de ter sido elogiada por nada menos do que Liza Minnelli. Após o espetáculo, a cantora e atriz foi cumprimentar o elenco e disse para a palhaça: “Esse palco engole os artistas, mas ninguém engole você.” Nem por isso, a brasileira saiu cantando de galo. “Precisamos ter pé no chão, porque um dia estamos comendo caviar e, em outro, sem dinheiro no bolso”, avisa.

Como prova desses altos e baixos, Gabriella largou o Cirque du Soleil, com salário fixo, viagens e muita mordomia, voltou para o Brasil e foi parar num circo pequeno de Bauru, interior paulista. Foi uma mudança e tanto de vida. Mas agora ela comemora os bons tempos. Atualmente, dá aulas de palhaço na companhia Jogando no Quintal, faz workshops em empresas e se apresenta Brasil afora.


O Estado de São Paulo , 13.02.2010 – Suplementos – Feminino. 


Indicado por Emerson Elias Merhy 


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