Erminia Silva – Piolin e suas histórias
A história de Piolin começa como tantas outras… histórias circenses. Certa vez quando um circo passava pela cidade de Resende (RJ), Galdino Pinto, com quinze anos de idade, fugiu com ele. Por volta de uns vinte anos mais tarde, quando o circo em que estava trabalhando passou pela cidade de Uberaba (MG) conheceu Clotilde Farnesi. Após algum tempo casaram-se e ela se transformou em uma jovem e elegante artista eqüestre. Galdino que há anos tinha iniciado sua aprendizagem nas artes circenses tornou-se empresário e palhaço, sendo que seu primeiro pavilhão foi o Circo Americano. Tiveram três filhos: Abelardo Pinto, o palhaço Piolin; Anchises – saltador e o palhaço Faísca (pai de Anchizes Pinto – conhecido como Ankito) e Raul (empresário circense) 1.
Piolin nasceu em Ribeirão Preto (SP) no dia 27 de março de 1887 e, como toda criança que nascia no circo, começou a trabalhar bem cedo. Aos sete anos iniciou sua carreira como contorcionista e realizava com seu irmão Anchises um número de bicicleta e, quando um pouco mais velhos, além destes números também trabalhavam no espetáculo como tony de soirée.
Em 1917 Galdino Pinto empresariava o Circo Queirolo, que tinha como palhaço principal Chicharrão. Devido a problemas familiares, Chicharrão saiu da companhia e Abelardo entrou para substituí-lo 2. Foi então que ele decidiu que deveria ser palhaço. “Achei que seria um absurdo uma companhia inteira parar por falta de uma figura e resolvi que eu seria o palhaço. Pensei comigo: se ele faz, eu também posso fazer. E comecei a estudar um tipo de palhaço” (Piolin, depoimento prestado ao Museu da Imagem e do Som). Segundo relato de Nelson Garcia, o palhaço Figurinha, Piolin teria conseguido algo muito difícil quando um palhaço “novo” substitui outro já consagrado, fez sucesso imediato.
Daí em diante a história do circo ganhou uma personagem que se tornou ícone da arte brasileira. Segundo seu relato, um trabalhador do circo de origem espanhola, notando que as pernas de Abelardo eram muito finas, chamava-o de piolin, que em castelhano significa barbante fino. Ainda que no começo quisesse se zangar, acabou achando graça e manteve o apelido e Piolin ficou.
Trabalhou em diversos circos, mas a melhor fase da carreira de Piolin foi o Circo Alcebíades, no Largo Paissandu, onde atuou durante cinco anos. Foi lá que conheceu o presidente Washington Luiz e principalmente quando foi “descoberto” pelos modernistas de São Paulo, os artistas intelectuais da Semana de Arte Moderna. Dentre os intelectuais que fizeram parte daquela Semana, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, foram os que iniciaram o movimento de identificar o circo, com as suas pantomimas e seus palhaços, a uma “tradição popular” a ser valorizada e reelaborada pela nova estética que estavam propondo criar.
Em 1928 foi publicado no primeiro número da Revista de Antropofagia, o Manifesto Antropófago, no qual Oswald de Andrade, utilizando-se de uma linguagem metafórica, apresentou o projeto daquela “nova estética” que deveria ser capaz de resgatar o caráter positivo do passado indígena, anterior à colonização portuguesa. A proposta central do Manifesto consistia em propor a deglutição da sabedoria acadêmica e erudita, a partir de um intercâmbio das idéias europeias com a brasilidade. Terminava saudando a “alegria e o matriarcado de Pindorama”. Quase um ano depois, em 27 de março de 1929, dia de aniversário de Piolin, aqueles intelectuais organizaram um almoço em homenagem ao mesmo e o chamaram de “Vamos Comer Piolin”. Em crônica publicada na coluna “Hélios” do jornal Correio Paulistano, sob o título “Piolin comido e comidas para Piolin”, o autor (anônimo) esclarecia que se tratava de um banquete em que o palhaço fora simbolicamente devorado, na qualidade de uma das mais legítimas expressões das artes cênicas brasileiras. Segundo o cronista, o evento reunira essa figura ímpar da arte circense com o mais selecionado grupo de intelectuais de São Paulo, sendo que no final do mesmo Piolin teria feito uma excelente atuação ao interpretar a sua própria morte.
No mesmo jornal do dia seguinte ao almoço, houve um destaque para aquele evento. Sob o título “Homenagem a Piolin”, faz referência ao fato de o Clube de Antropofagia ter prestado tributo ao palhaço no dia de seu aniversário e, neste artigo, temos mais informações a respeito. O almoço se deu no Restaurante da Casa Mappin, em São Paulo, e dele participaram 32 convidados, dentre os quais; Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Raul Bopp, Guilherme de Almeida e Mneotti Del Picchia. Para o articulista, os participantes do encontro consideraram o circo a expressão mais perfeita da arte mímica, merecedor de um papel de destaque no cenário cultural. Quanto a Piolin, destacaram a sua interação com o público e associaram seus personagens à realidade brasileira.
Alice Viveiros de Castro, em seu livro O elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no mundo, reproduz textos escritos por alguns desses intelectuais no período 3. O que se pode observar é que em todos eles está presente a idéia da utilização do circo como uma forma de se reelaborar e revalorizar o que eles concebiam como a tradição popular, influenciando o pensamento e as artes:
Piolin e Alcebíades são palhaços, o que quiserem, mas são os únicos elementos nacionais com que conta o nosso teatro de prosa. Devem servir de exemplo, como autores, para os colegas que os desprezam e ignoram. (Antônio de Alcântara Machado).
Ele revolucionou o picadeiro, como nós, seus amigos, revolucionamos as letras e as artes. (Menotti del Picchia).
Os únicos espetáculos teatrais no Brasil que a gente ainda pode frequentar são o circo e a revista. Só nestes ainda tem criação. Não é que os poetas autores de tais revista e pantomimas saibam o que é criação ou conservem alguma tradição efetivamente nacional, porém as próprias circunstâncias da liberdade sem restrições e da vagueza destes gêneros dramáticos permite aos criadores deles as maiores extravagâncias. Criam por isso sem leis nem tradições importadas, criam movidos pelas necessidades artísticas do momento e do gênero, pelo interesse de agradar e pelas determinações inconscientes da própria personalidade. Tudo isto são imposições que levam à originalidade verdadeira e à criação exata. (Mário de Andrade).
Em 1972, Julio Amaral de Oliveira, um dos únicos (se não o único) jornalista e pesquisador da época que escrevia sobre o circo, publicou um artigo no jornal Diário da Noite, com o título “Piolin volta aos 75. A saudade é o espetáculo”. Nele o autor fala da preparação da cidade de São Paulo para comemorar o cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Um dos eventos seria a armação de um circo no vão do Museu da Arte Moderna. O circo era de Piolin, uma velha lona encostada há muitos anos “desde que o INPS lhe proibiu de trabalhar no terreno daquele Instituto, na Praça Marechal Deodoro”. Por conta desses acontecimentos, Abelardo volta a ser assediado pela imprensa, mas Julio Amaral não era qualquer jornalista e consegue uma entrevista exclusiva.
Nela, com 75 anos de idade, fala dos tempos de seu circo armado no Largo Paissandu e do dia em “que baixou lá uma turma de intelectuais da época”. Nesta reportagem temos a visão de Abelardo sobre o Piolin ter virado “comida intelectual”.
Gostaram do meu espetáculo e passaram a escrever nos jornais e revistas da época comentários e críticas amplamente favoráveis ao meu trabalho. Consideravam-me um grande autor e ator, pois todas as comédias do meu circo eram escritas e representadas por mim. Não entendia muito as tertúlias intelectuais daquela turma, mas todos os dias eles estavam no meu circo elogiando e aplaudindo. Exigiram que eu frequentasse a roda. Então, volta e meia lá estava eu explicando meu trabalhando e tomando um chope nos bares famosos da época: Bar Cidade Munich, Bar Viaduto, Bar da Imprensa, Pelicano, Alhambra, Leiteria Campo Belo e outros. Oswaldo de Andrade era o mais avoado. Parecia que ele realmente gostava do que eu fazia e, por isso mesmo, resolveu que toda a turma me faria uma homenagem. Então nós fomos almoçar no restaurante do Mappin, o mais elegante da época, toda a turma estava presente. Houve discursos, abraços, palmas e muito chope. Sem querer eu estava totalmente integrado no grupo e, só não entendo porque os literatos que codificaram e historiaram as artes da época, não incluíram minhas comédias.
Não foi apenas Abelardo quem não entendeu porque os historiadores do teatro e das artes não incluíram ou incluem o circo-teatro como participante importante na formação cultural brasileira. De qualquer forma, por esse registro, mesmo que ele não entendesse das “tertúlias intelectuais daquela turma”, teve tal reconhecimento e projeção como artista, que até na década de 1930, houve o lançamento das balas Piolin, as quais traziam figurinhas do palhaço para se colecionar, nas suas mais diversas aventuras.
Piolin trabalhou também na TV Tupi durante um ano e meio (1951-1952), apresentando o programa Cirquinho do Piolin. Nesta mesma época participou do filme Tico Tico no Fubá. Fez turnê pelo Brasil e mais tarde voltou a São Paulo. Sem ter uma lona própria, participou apenas de alguns shows, em ginásios, clubes, parques, entre outros.
Em dezembro de 1961 foi despejado de seu circo montado na Avenida General Olímpio da Silveira. Motivo: aproveitamento do terreno. Realidade: o terreno permaneceu desocupado até 1980. Indignado Piolin declarou: “Fui despejado e até hoje não sei porque e nem quero saber”. Mais tarde essa terra, propriedade do Estado foi leiloada e atualmente abriga um Bingo. O artista permaneceu descontente com a situação do circo que estava desamparada pelo Estado e desclassificado pelas entidades de classe.
Piolin morre no dia 04 de setembro de 1973, vítima de insuficiência cardíaca.
Um dos grandes sonhos do Piolin era a fundação de uma grande escola de circo no Brasil. Em 1958, numa reportagem da Folha da Noite, declara que para ele:
Um dos motivos da decadência do circo é a falta de escola para a formação de artistas. Atualmente são poucos os bons artistas circenses, pois a maioria, por diversas razões abandonou a profissão e os que vão se formando não encontram uma orientação adequada. Há muitos velhos artistas que poderiam ser aproveitados como mestres, caso os poderes públicos criassem uma escola.
Em 1976 foi fundada a Associação Piolin de Artes Circenses, na extinta Casa do Ator, ambas sob coordenação de Francisco Collman. Nesta mesma época, na Secretaria do Estado da Cultura, havia uma Comissão de Circo e junto com a Associação fundaram a Academia Piolin de Artes Circenses. Três anos após sua morte, uma homenagem justa aos seus trabalhos e militância. Mas, infelizmente, a escola que levou seu nome teve por parte dos gestores públicos quase que a mesma relação de quando seu circo foi despejado em 1961. Não houve políticas públicas sérias voltadas para a melhoria da estruturação da escola, no seu funcionamento ou financiamento, ao contrário, a escola teve seu fim em 1983 e a parada no seu funcionamento se justifica pelo descaso da Secretaria da Cultura, que deixou de pagar os professores regularmente, não prestou a devida manutenção à lona e aos aparelhos da escola.
Entretanto, como nada morre por acaso sem deixar frutos, como afirma Emanuela Helena Rodrigues, em sua pesquisa sobre a Academia Piolin: “Daí para frente muita coisa aconteceu, e nos deparamos hoje com um cenário bastante diverso de escolas e instituições que difundem as artes circenses com distintos métodos e objetivos.” Foi dada, a partir da experiência vivenciada naquela escola, a possibilidade de se ensinar circo fora da lona, e que isto era um fato irreversível. Concomitante à Academia, a proposta da formação de uma Escola Nacional de Circo chegou ao Serviço Nacional de Teatro em 1974, quando assumia a direção Orlando Miranda. O projeto Escola iniciava seu desenvolvimento dentro de uma organização pública, mas agora de caráter nacional, através do herdeiro de Franco Olimecha, o também circense Luis Franco Olimecha, seu neto. A criação do então Instituto Nacional de Artes Cênicas por Alísio Magalhães, em 1981, incorporando as áreas já absorvidas pelo Serviço Nacional de Teatro – teatro, dança, ópera e circo –, foi o último passo necessário para a consolidação e fundação, em maio de 1982, da Escola Nacional de Circo no Rio de Janeiro.
Piolin, como muitos circenses que lutaram por espaços de montar circos, não puderam ver seus sonhos se concretizarem. Após 31 anos de sua morte, foi criado em 2004, dentro da Galeria Olido, um “centro de referência do riso”, denominado de Espaço Piolin. Infelizmente, este também não teve continuidade. Mas, uma coisa pela qual Abelardo Pinto sonhou que foi a formação de Escolas de Circo, tem conseguido se concretizar e proliferar.
1. Conforme informação oral de Nelson Garcia – o palhaço Figurinha, casado com Ayola (falecida) uma das filhas de Piolin.
2. Idem. Fontes: Arruda Dantas – Piolin. São Paulo: Editora Pannartz, 1980. Júlio Amaral Oliveira – “Visões da história do circo no Brasil” in Última-Hora-Revista. São Paulo, 06.06.1964. Paulo Noronha – O Circo. São Paulo: Academia de Letras de São Paulo, Cena: Brasil – Volume I, 1948. Roberto Ruiz – Hoje tem espetáculo? As Origens do Circo no Brasil. Rio de Janeiro: INACEN (Col. Memória), 1987. Erminia Silva – As múltiplas linguagens na teatralidade circense. Campinas (SP), Tese Doutorado, 2003.
3. Alice Viveiros de Castro – O elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005, pp. 188 e 189.