Outro dia estava aqui me lembrando do primeiro espetáculo de circo que assisti na França. Deve ter sido uns dez dias depois da minha chegada, peguei o RER (trem que liga Paris e as cidades vizinhas) e fui me aventurar em Saint-Denis, perto do famoso Stade de France, aquele onde o Brasil perdeu pra França na Copa do Mundo de 1998… Mas, esse dia França e Brasil tinham se unido, e pelo circo. Era o finalzinho do Ano do Brasil na França (2005) e a companhia Ô Cirque convidou artistas brasileiros para montar o espetáculo “O Sol Também”. Sob o arco de uma lona magnífica, cavalos, dançarinos e acrobatas interpretavam uma história que parecia simples e cativante tendo a Amazônia como pano de fundo. O pequeno detalhe é que eu ainda não entendia nada do que eles diziam… Mas isso não foi um problema, pois foi essa a primeira experiência que me fez esquecer o frio que estava lá fora e me sentir um pouquinho mais em casa.
Assim começou a minha descoberta do circo francês. Ou melhor, do circo em território francês. Pois, se por um lado o circo francês tem uma identidade, por outro lado ele é particularmente diverso e heterogêneo. Se esse primeiro espetáculo me era totalmente familiar, com direito à lona, palhaço de nariz vermelho, musa no trapézio em balanço, cavalos, terceira altura e até brasileiros (!!), o que pude ver e pesquisar do circo ao longo dos anos em que estive deste lado de cá me surpreendeu, me emocionou, me conquistou.
(Um parêntese: não estou dizendo que o único tipo de circo que conheci no Brasil foi esse com lona e animais, e nem que os espetáculos que aí pude assistir não me emocionaram. A diversidade de formas e expressões do circo é tão bela e rica no Brasil quanto na França, e nos dois países existe lugar para o circo « tradicional » e para o circo « atual ». Não estou aqui fazendo nenhuma comparação, e continuo adepta fervorosa do circo brasileiro! Fim do parêntese).
Voltando às minhas lembranças… Se eu não me engano, o espetáculo seguinte que assisti foi o “Autour d’Elles” da companhia Vent d’Autan. Todo o inverso do primeiro. A lona estava lá, mas o resto tinha desaparecido. Uma hora de mão-à-mão para falar da complexidade das relações humanas e da vulnerabilidade dos seres. Três homens, três mulheres, duas escolhas originais ou ao menos novas para mim: a de deixar a virtuosidade em segundo plano ao serviço de uma intenção dramática, e a de fazer um espetáculo inteiro em torno de uma só arte circense.
Esse não foi o único espetáculo que vi com “apenas” uma modalidade circense. Passei pela bolha gigante dos acrobatas aéreos Les Arts Sauts pra ver seu último espetáculo “Ola Kala” (sim! tive a sorte de ver uma das últimas apresentações da companhia que terminou suas atividades em 2007), pelo delírio malabarístico da companhia Jérôme Thomas em seu espetáculo “Rain/Bow”, pelo equilíbrio do universo dos aramistas Les Colporteurs no espetáculo “Le fil sous la neige”, enfim pela intimidade do quadrante coreano da companhia Morosof e de seu espetáculo “Prochain”.
O viés da disciplina única escolhido por essas companhias é um fenômeno que existe há algum tempo, e que contribuiu para a afirmação da expressão “Artes do Circo”, usada na França a partir do final da década de 80, logo após o nascimento do “Nouveau Cirque”, um outro fenômeno francês. Na era da mistura das artes, esse termo de origem francesa dá, ao contrário, independência e autonomia a cada modalidade circense (ou a famílias de disciplinas: a arte do malabarismo, dos aparelhos aéreos, a arte clownesca…), elevando-as ao estatuto de arte por si mesma.
É verdade que o circo, principalmente o circo contemporâneo, é visto na França mais como arte do que como entretenimento (não que os dois sejam totalmente opostos, mas essa é uma outra discussão…). Entretanto, me lembro de ter visto aqui espetáculos tão divertidos quanto diversos: o caos científico de “Raté Rattrapé Raté” do trio-clownesco Nikolaus Cia Pré-O-Ccupé, o gigantismo de “Mirages” do circo familiar Arlette Gruss, o surpreendente e desafiador “Question de Directions” do Collectif AOC, os incríveis desproporcionais do Cirque Aïtal no espetáculo “La Piste Là”, o indefinível “L’Immédiat” de Camille Boitel… Sem contar que a França, terra de integração (qualidade afirmada, mas discutida pelos próprios franceses), é também um ponto de encontro de expressões artísticas vindas do mundo inteiro. Assim, encontramos constantemente circos “étnicos” e estrangeiros, como os que pude assistir: o circo cigano, festivo e musical do Cirque Romanès e do espetáculo “Parfums d’Est” do Cirque Rasposo, o belo e contrastante espetáculo “Taoub” do Grupo Acrobático de Tanger, o canadense “Rain” do Cirque Éloize, ou o poético “Làng tôi, mon village” com seus imensos bambus, interpretado por artistas do Circo Nacional do Vietnam.
Também me lembro de ter visto muitos espetáculos de escolas de circo, principalmente do CNAC – Centro Nacional de Artes do Circo, mas também da Academia Fratellini, do ESAC – Escola Superior de Artes do Circo de Bruxelas, e o espetáculo “In Vitro 09”, resultado da parceria entre a companhia Archaos e os alunos da ENC – Escola Nacional de Circo do Rio de Janeiro. Sabe-se que o ensino francês é referência mundial em matéria de circo, mas além de um ensino de qualidade, a França se esforça que seja através da iniciativa pública, privada ou associativa, em acompanhar o artista em seu caminho, durante e após sua formação. Uma atenção particular é dada aos novos artistas, e não somente aos franceses. Uma prática que se tornou então comum foi a de se criar uma agenda de apresentações de espetáculos de conclusão de curso de escolas de circo francesas ou estrangeiras, e de organizar uma turnê internacional dos formandos do CNAC.
A valorização dessa produção jovem (ou nem tão jovem assim, mas “emergente”) é bastante válida, pois a riqueza do que é produzido não é de se negligenciar. As apresentações de fim de curso do CNAC são esperadas pela classe artística e público como um evento excepcional. Acontece o mesmo nas apresentações públicas dos premiados do programa Jeunes Talents Cirque Europe (Jovens Talentos do Circo Europa), que eu aprecio particularmente. Durante um ano, os escolhidos por esse programa, que são europeus ou estrangeiros instalados na Europa, recebem uma bolsa, acompanhamento artístico e administrativo e têm locais disponibilizados para seus treinos e pesquisas. Além disso, uma série de apresentações públicas é organizada em diferentes locais da Europa e no final do perído os artistas apresentam em Paris uma curta “maquete” de seus futuros espetáculos, diante de um público seleto e de profissionais que podem dar outros desfechos às suas carreiras. Pude assistir à apresentação da última edição do programa em 2010 e fiquei impressionada com a originalidade das propostas. Os que mais me marcaram foram os ritmados Defracto, os ousados da Subliminati Corporation, os “underground” da Race Horse Company, e os autênticos Ivan Mosjoukine.
Todos esses artistas organizados em coletivos ou em solos, todas as grandes e pequenas companhias, confirmadas ou emergentes, coexistem e convivem na paisagem circense francesa. Essa coabitação gera certamente algumas tensões, mas cria também uma efervescência, uma força inventiva que é a marca característica do circo “à la française”. A capacidade criativa do circo é assumida, incorporada e revindicada. Não é à toa que alguns usam o termo “circo de criação” pra falar do circo contemporâneo produzido na França. Cada artista pode aí expressar sua própria identidade através da arte do circo.
Enfim, essa facilidade de passar do circo mais conceitual ao mais despretensioso me encantou, sem me cegar. Ainda bem. A cada nova descoberta me vejo com um brilho nos olhos e uma euforia no coração, como uma criança que vê pela primeira vez o palhaço com sua buzina ou o trapezista se arriscando lá em cima. E o desejo de dividir isso com alguém, com todo mundo, acabou surgindo. A aventura agora será a de colocar essas lembranças, olhares, descobertas e reflexões em palavras pra poder compartilhar isso tudo muito além do território francês… Aqui já foi dado um primeiro passo. Uma maneira de distribuir um pequeno “souvenir” da França.