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Um céu de muitas estrelas

Jacques Antunes, um sujeito meio estranho e, porque não dizer, um tanto exótico, acostumado a sair por esse mundo velho de muita guerra e pouca paz, com sua câmara fotográfica, à cata de beleza, já andava um tanto desiludido quando resolveu fotografar os circos de periferia. A desilusão vinha do fato de que em sociedades de tantas desigualdades a tal da beleza acaba se tornando uma mercadoria das mais raras. Até porque virando mercadoria a beleza perde um pouco dela mesma… (Mas não vamos adentrar nesse campo da dialética relativa à mercadoria.)

A dificuldade está em que quase sempre a beleza é produto da riqueza ou foi apropriada por ela e isto soa muitas vezes ostentação. Contaminada pela riqueza, a beleza esvazia-se um tanto de si. Por outro lado, quando não é o caso, e a beleza aparece com simplicidade, quase humildade, junto com ela, sua vizinha, mora a pobreza e as duas rimam com tristeza. A sensação é de se estar embelezando a miséria, o que para Jacques não tem muito sentido.

Daí  que, certo dia, ao ver por acaso, num circo de subúrbio, a pose de mariposa de uma contorcionista, no movimento de colher uma rosa com a boca, teve a intuição de ter encontrado a tal beleza que procurava. Porque ele não queria uma beleza com mácula. Só a beleza completa o contentava. Pensou assim ter encontrado, talvez, o caminho para a solução de seu dilema.

Então Jacques danou-se a mambembar mundo a fora atrás do povo circense. Foi aos lugares mais longínquos, para onde os pequenos circos acabaram expulsos, nos quais os terrenos baldios e os campos de futebol de areia ainda não foram murados. Encontrou os circos se estabelecendo onde a concorrência na oferta por diversão barata ainda é pouca. Chegou durante o dia e viu as mulheres, ajudadas pelas filhas, lavando roupa, fazendo comida, varrendo o chão, algumas meninas estudando, como as da vizinhança. Observou os homens trabalhando como soldadores, eletricistas, biscateiros, também como os da vizinhança. No mais, os namoros, as briguinhas, a solidariedade nos momentos difíceis, o dia a dia dos velhos e dos novos casais, os gatos e cachorros catando comida, a brincadeira dos meninos, aparentemente as mesmas preocupações com o ganho pouco e o trabalho muito.

Mesmo assim Jacques saiu fotografando tudo, inclusive a comunidade do circo preparando os produtos que seriam vendidos para a platéia, logo mais à noite antes do espetáculo. Até que chegou a hora de levantar a empanada e nosso fotógrafo teve seu primeiro alumbramento. A lona circular puxada por cabos, sendo erguida pelos homens, era como um sol se levantando em torno do mastro cósmico. Até que ficou bem esticada, as pontas atadas em espeques, flutuando ao vento, as cores muito vivas. Parecia um pássaro prestes a alçar vôo, uma espaçonave, um disco voador talvez.

Jacques viu quando o dono do circo foi lá verificar se os nós que atavam a empanada do circo aos espeques estavam bem seguros. Na certa para se certificar que a lona não levantaria vôo, pensou. Então, achou que poderia relaxar um pouco. Encostou-se num canto e cochilou. Não sei bem se já havia acordado, se foi uma visão ou um sonho. O certo é que Jacques se viu bem no alto, mas muito no alto mesmo, acima das antenas e dos edifícios mais altos, depois das rotas dos aviões de carreira, para além de onde passeiam os satélites e explodem os foguetes, mais ou menos nos campos onde os anjos brincam de artistas, entre a segunda e a terceira esfera celeste, como imaginavam os astrofísicos e astrólogos, certamente do lado contrário onde Yuri Gagarin descobriu que a Terra era azul.

Isto porque era noite em nosso planeta e Jacques foi obrigado a utilizar um filtro ultra-sensível ao encanto da luz, segredo que só ele possuía, para observar a Terra inteira. E quando focou sua luneta no Planeta se movendo feito um bicho de água e nuvem, o que viu não foi o clarão dos fornos das siderúrgicas, nem mesmo os refletores dos aeroportos e estádios, mas a chama vacilante dos circos de periferia, dançando nos subúrbios das florestas de cimento.

E como precisasse se certificar do fato, ajustou a antena de seu gravador ultra-sensível à magia dos sons, antena especialmente imaginada por ele, endereçando-a ao Planeta Azul, que aliás bem poderia ter um pouco mais de verde. O que ouviu, então, não foram os auto-falantes das grandes cadeias de televisão, nem o berro dos bois sacrificados nos matadouros industriais, ou mesmo a melodia das músicas eruditas nas luxuosas salas de concerto. O que escutou foi o riso do mais franzino dos meninos nas arquibancadas de um circo de subúrbio.

Jacques teve certeza, então, do que intuíra. Abriu os olhos e reparou que era tardezinha. O circo estava pronto, inclusive as arquibancadas, que mais pareciam poleiros de galinha. A radiadora revezava canções da moda com anúncios do espetáculo de logo mais, e os traillers, onde moram os circenses, haviam se transformado em camarins. Gente idosa e de meia idade, adultos envelhecidos, jovens cansados, crianças desnutridas, atletas não tão em forma, sorrisos com dentes faltando, iam tomando corpo, ganhando alma. Aqui, acolá, um palhaço mais triste, uma lágrima pintada. No mais, cabeças que se levantavam, peitos que estufavam, ombros que se erguiam, braços que se alongavam, bocas que se expandiam em riso. Aos poucos, o encanto tomava a figura daquela gente. As pessoas se revelavam como de fato são: mágicos, magas, reis e princesas; gente dotada de poderes especiais, íntima do fogo, do ar, da terra e da água, capaz de desafiar as leis da gravidade e da fisiologia, de adivinhar o destino pelas cartas, pela íris ou pelas linhas das mãos.

Foi quando, um menino, entusiasmado, contou a Jacques sobre o cortejo no dia em que o circo chegou ao bairro. O carro de som, a pequena orquestra, os artistas se apresentando, os cachorros latindo atrás e o povo correndo pra ver. Porque circo é coisa de cigano, de povo ambulante, bando de aves de arribação, sem pouso ou parada certa, sem origem nem destino, que só voa, para quem tudo é vereda.

Até  que a lua, espantando o sol do firmamento, fez com que o céu adentrasse com sua noite no interior da empanada. Só então Jacques compreendeu que o circo é do mundo noturno, e que por isso, a empanada já  não pode ser o sol, no máximo, um guarda-sol, porque protege a noite interior de seus raios.

Logo o povo se chega vestido de domingo e o espetáculo começa ainda fora da empanada, com o rapaz que oferece à moça a maçã do amor, com o menino que namora o algodão doce como quem quer saborear uma nuvem. Depois se entra no circo e vem o céu, com a luz das estrelas de fora espiando pelos buracos da lona, com a luz das estrelas de dentro salpicando de claridade o firmamento do picadeiro. Porque tudo ali é como se fosse o jardim da infância do paraíso celeste, com seus anjos voando nos trapézios, com suas constelações de planetas fazendo acrobacias, com seus cometas riscando os ares, feito motocicletas no globo da morte, com seus astros engolindo fogo e soltando enormes labaredas, com seu atirador de asteróides tirando fino no corpo das estrelas, com sua mocinha do arame fazendo vibrar a corda do coração do menino.

Quando Jacques acordou na manhã seguinte, já era dia alto. O sol havia desencantado o pequeno céu e feito a vida voltar à sua rotina. Só os meninos ainda traziam os olhos brilhantes, porque eles também são anjos, que andam pelo mundo, desencantados em gente. Tudo já estava desarmado e a companhia preparava-se para partir. O menor dos meninos chegou-se para o fotógrafo e apontou-lhe a grande lona enrolada, pronta para seguir caminho. Ao pé do ouvido, segredou-lhe: – Lá se vai o circo, escondido naquele caminhão!

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