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Uma estória que precisa ser contada! A migração de artistas circenses por um viés cultural e econômico

Sluchem Tavares Cherem (IC)*, Daniele Dionisio da Silva (PQ); Cintiene Sandes Monfredo **(PQ2)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro*, UFRJ**

Palavras-chave: Migração, Relações Internacionais, Cultura Popular, Artistas Circenses, Brasil-Europa.

O trabalho foi pensado a partir da observação de que, hoje, a maioria dos artistas circenses brasileiros ou está no exterior, ou já foi pelo menos uma vez em busca de trabalho. A história e a cultura da profissão dos artistas de circo são marcadas pela identidade cigana de livre migração, o que permitiria caracterizar essa migração Europa-Brasil-Europa como uma migração pelo viés cultural. Se usarmos, como base teórica, os economistas adeptos do livre fluxo de mão-de-obra, poderíamos avaliar a situação caracterizando essa migração pelo viés econômico, onde os artistas de circo seriam incluídos nas teorias capitalistas de exploração da mão-de-obra assalariada. Em muitas análises, as migrações são caracterizadas pelas condições econômicas e apresentadas como um impulso dos indivíduos em busca por melhores condições de vida, de trabalho e salários. As teorias gerais da migração, com foco quantitativo, são análises referentes às dinâmicas das migrações internacionais mais visíveis, onde efetivamente não se enquadra a migração dos artistas de circo, principalmente pela pequeníssima parcela de indivíduos circenses migrantes em relação ao número total de trabalhadores migrantes, o que torna esse tipo de migração circense quase invisível. Entretanto, nessas teorias também há a necessidade de se verificar as particularidades dos movimentos migratórios com um foco mais qualitativo, onde são analisados elementos como a continuidade e a persistência, o tempo e o espaço; as formas de interação, inserção nas sociedades de destino; a relação cultural; os impactos nos países de origem e retorno; e os fluxos de remessas, pontos que são bem relevantes no caso da migração de artistas circenses. Assim, se propõe que a análise economicista do processo migratório deve ser complementada pela visão sociológica que, sobretudo, avalia as questões de inserção social dos indivíduos nos países de destino e as condições culturais, algo extremamente importante para o estudo proposto. Segundo Rogério Haesbaert, os indivíduos migram auxiliados pelas redes sociais, redes de informação realizada por outros imigrantes que ajudam na inserção do indivíduo mais facilmente nos locais aonde chegam. Este ponto tem relevância para a migração circense, já que é comum o artista viajar para o exterior com um contrato de trabalho feito no Brasil, entre uma agência e um empreendimento circense no exterior, agência esta que já possui uma sólida rede de informação no exterior nesta área de trabalho. Grande parte dos trabalhadores de outras áreas migra na ilegalidade, desconhecendo os procedimentos para obtenção de vistos de trabalho, seus direitos e deveres em outros países e os riscos das migrações feitas de forma irregular. Entretanto, os artistas circenses que migram para a Europa, na maioria das vezes por causa desses contratos de trabalho, mesmo tendo visto de trabalho, não desfrutam de condições de trabalho melhores que os ilegais, já que realizam jornadas de apresentações extremamente pesadas.

Considerando que as correntes teóricas de migração são análises referentes às dinâmicas das migrações e admitem a necessidade de se verificar as particularidades dos movimentos migratórios, torna-se essencial contar a história destes artistas de circo para tentar explicar melhor as motivações, causas e consequências. Na verdade, muito pouco se sabe sobre o dia a dia do circo, das famílias ou dos artistas circenses no Brasil; bem como de seus problemas, dificuldades e por que muitos jovens de família circense tradicional abandonam o picadeiro e partem em busca de novas oportunidades, levando na bagagem tudo aquilo que aprenderam profissionalmente em seu núcleo familiar. O que dizer, então, da realidade dessa minúscula migração em termos numéricos ou percentuais?

Levando em conta que é na Europa, ainda no Império Romano, que o circo ganha força e se desenvolve, no Brasil existem dois registros diferentes da chegada do circo. É apontado em alguns documentos que, ainda no século XVIII, houve a aparição de grupos circenses antes mesmo da criação do circo moderno, normalmente formada por ciganos expulsos da Península Ibérica, que traziam para as praças e ruas do Brasil apresentações como doma de animais, números de ilusionismo e até teatro de bonecos. (DUARTE, 1995)

Registra-se a presença do circo moderno no Brasil desde o século XIX, incentivada pelos ciclos econômicos do café, borracha e cana-de-açúcar. Os circenses, que eram europeus em sua maioria, chegavam como companhias que vinham apresentar-se nas cidades brasileiras, que passaram a disseminar a arte circense pela formação das primeiras famílias consanguíneas circenses, misturando os números clássicos europeus com o enquadramento da cultura do povo brasileiro, criando assim novas atrações. Podemos apontar, então, que a ponte entre Europa-Brasil tem uma densidade de fluxo migratório histórico. No contexto do fim do século XX, muitos circos deixam de ser estruturas familiares; acredita-se que a visão histórico-cultural do artista perdeu espaço para a necessidade econômica, bem como o surgimento de uma visão empresarial do circo, focada simplesmente no lucro, tornou o circo menos sentimental ou romântico. Além disso, em uma perspectiva diferenciada, há o surgimento das escolas de circo, visando suprir a demanda e formar artistas que já não são de família circense. Nesta lógica, os laços sanguíneos vão sendo substituídos por uma relação de patrão e empregado, como qualquer funcionário que trabalha em troca de salário. Outro fator preponderante é o surgimento de novas formas de entretenimento, como a televisão, o cinema e a internet, o que reduz drasticamente o espaço e o público circense nos grandes centros urbanos, afetando o lucro gerado pelos circos. Na última década do século XX, essa alteração na relação, somada às restrições impostas ao emprego de animais nos circos brasileiros, gerou desemprego e estimulou a busca de novos mercados de trabalhos no exterior, o que permitiu uma reativação da densidade de fluxo migratório histórico por meio da ponte Europa-Brasil, só que agora no fluxo inverso, Brasil-Europa.

Em maio de 2011, começaram a ser aplicados os questionários aos artistas circenses a fim de avaliar questões relativas à migração, como idade, nacionalidade, se faz parte de família tradicional circense, onde aprendeu a arte circense, se já trabalhou fora do país (onde, quando, em que tipo de trabalho e por quanto tempo), se migrou sozinho ou com a família, como foi a experiência (avaliação financeira, profissional e pessoal), se teve alguma dificuldade referente à língua e a cultura do outro país, qual a motivação para ir trabalhar fora do país, como foi o processo (convite ou procurou meios para oportunidade de trabalho internacional), passou por algum tipo de seleção antes, como foi o reconhecimento profissional do público e dos empregadores. Essas questões foram utilizadas para traçar um perfil do artista circense que migra para Europa a trabalho, com a finalidade de obter dados e comprovar o atual crescente hábito entre os artistas circenses brasileiros.

Já fim do século XVIII há relatos que apontam grupos circenses indo de cidade em cidade, em lombo de burros, fazendo de tudo um pouco em pequenos espetáculos em busca de público e de sustento, algo que demonstra a essência de livre migração destes artistas, bem como sua necessidade de obter retorno financeiro com o trabalho artístico. Deste modo, essa migração dos jovens aconteceria mais naturalmente do que em outros contextos profissionais, apesar dos questionários e entrevistas apontarem que a migração tem hoje um foco mais na migração individualizada de jovens do sexo masculino e não mais na familiar. Os questionários iniciais, bem como as entrevistas gravadas ainda em 2011, já sugeriam que era muito comum a migração dos artistas circenses brasileiros, tendo sua primeira experiência no exterior entre os 10 e 20 anos, principalmente na Europa, por um período de no máximo um ano, desempenhando um amplo espectro de atividades circenses, ou para a América do Sul, por períodos mais curtos, de até três meses, desempenhando principalmente atividades de malabarismo. No caso da América do Norte, da Ásia e do Oriente Médio, as ocorrências são menores. Apesar de muitos desses jovens não serem de família tradicional circense, vivem exclusivamente do trabalho no circo e tinham a experiência profissional e artística como motivação para viagem, apesar de considerarem outras motivações. Os questionários apontam ainda que estes jovens obtêm vantagens financeiras e profissionais consideráveis se comparados a outros artistas circenses que nunca saíram do país.

Nos questionários aplicados em 2012, em função da crise econômica e da retração do mercado de trabalho que atinge a Europa, surgem relatos de experiências de trabalho mais frequentes na América do Norte, na Ásia e no Oriente Médio. Neste momento, há que se considerar também que, nos últimos anos, o Brasil vem registrando um crescimento econômico contínuo, com significativa elevação do nível de emprego formal, aumento da renda da massa da população e aumento dos gastos com entretenimento e cultura. Isso vem promovendo uma singela ampliação das atividades ligadas ao circo-teatro, como, por exemplo, apresentação de artistas circenses em shoppings, em espetáculos teatrais, em eventos esportivos, em festivais culturais, em programas de TV e shows, além do pequeno aumento de editais de apoio governamental para a área circense. Essas questões têm levado alguns artistas, que já trabalharam várias vezes fora do país, a repensar se vale a pena enfrentar uma nova jornada de trabalho no exterior, longe de seu ambiente familiar ou cultural, com ganho econômico relativo e com a possibilidade de uma carga de trabalho exaustiva.

Considerando que essa migração invisível de artistas circenses faz parte da própria cultura da profissão, pode-se apontar que o trabalhador migrante, legal ou ilegal, artista ou não, sempre tem uma carga de trabalho pesada e pouquíssimos benefícios trabalhistas. Além disso, que a realidade econômica e política local ou regional influenciam diretamente na escolha pela migração. E, por fim, que as experiências no exterior agregam imensamente valor profissional a qualquer artista circense.

Referências:
– ALMEIDA, Luiz Guilherme. Ritual, Risco e Arte Circense. Brasília: UNB, 2008.
– BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp.
– CASTRO, Alice Viveiros de. Elogio da Bobagem. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.
– DUARTE, R. Horta. Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX, Campinas, UNICAMP, 1995.
– HAESBAERT, Rogério. Da desterritorialização a multiterritorialidade. Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina. – Universidade de São Paulo, Março 2005.
– HARRIS, John R., TODARO, Michael. Migration, Unemployment and Development: A Two-Sector Analysis. The American Economic Review, Vol. 60, nº 1, 1970 ( pp. 126-142)
– RUIZ, Roberto. Hoje tem espetáculo? As origens do circo no Brasil. Rio de Janeiro, INACEN, 1987.
– SASAKI, Elisa Massae. ASSIS, Gláucia de Oliveira. Teorias das Migrações Internacionais. XII Encontro Nacional da ABEP, 2000.
– SAYAD, Abdemaleck. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP, 1998.
– SILVA, Ermínia. O Circo: Sua Arte, Seus Saberes: O Circo no Brasil no Final do Século XIX e Meados do Século XX. 1996. Dissertação de Mestrado – Unicamp – Departamento de História.
– SILVA, Ermínia. Respeitável público… o circo em cena / Erminia Silva, Luís Alberto de Abreu. – Rio de Janeiro : Funarte, 2009.
– TANGARÁ, Dirce. Picadeiro. São Paulo, EQUIPE, 1978.
– TAMAOKI, Verônica. O ghost do Circo. São Paulo: Massao Ohno e Robson Breviglieri Editores, 1999.
– TODARO, Michael P. Internal Migration and Urban Employment: Comment. The American Economic Review, Vol. 76, nº 3, pp. 566-569, 1986.

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